06 janeiro 2007

Carro bom e barato

Carlos Ghosn, presidente da Renault e
da Nissan, diz que a indústria ocidental
é viciada em desperdícios e tem muito
que aprender com China e Índia

Veja – Qual a maior contribuição da indústria automobilística mundial nestes quase 100 anos de existência?
Ghosn – As montadoras alteraram por duas vezes a maneira pela qual o ser humano produz bens. E, com isso, quero acreditar que tenham mudado também hábitos culturais e de consumo. A primeira inovação foi a linha de montagem de Henry Ford, depois da I Guerra Mundial. Essa invenção eliminou o caráter artesanal da indústria e foi imediatamente mimetizada por outros setores. A segunda revolução veio com o conceito de produção enxuta introduzido pelas montadoras japonesas depois da II Guerra Mundial. Não há companhia atual, em setor algum, que consiga enfrentar o desafio da globalização sem a racionalização de custos introduzida por Eiji Toyoda e Taiichi Ohno, da Toyota.

Veja – O que explica o pioneirismo da indústria automotiva?
Ghosn – Montadoras são laboratórios permanentes nos quais a eficiência é diariamente testada. Isso porque a produção de um automóvel exige diferentes formas de organização e uma miríade de tecnologias. Também envolve empregos e investimentos maciços. A instalação de uma fábrica que produza 250.000 carros por ano custa de 300 milhões a 400 milhões de dólares. Já o desenvolvimento de um carro novo não sai por menos de 300 milhões a 500 milhões de dólares. Uma pequena inovação faz enorme diferença e passa a ser absorvida por indústrias de outros segmentos. Os carros também mexem com um aspecto emocional das pessoas. Poucos produtos são tão fascinantes quanto eles. Consumidores cultuam suas marcas preferidas e recorrem a modelos que já tiveram para pontuar fatos de sua vida.

Veja – As dificuldades financeiras da General Motors e da Ford não são indícios de que a indústria automotiva perdeu a capacidade de liderar a inovação?
Ghosn – Não. A crise é condição inata à fabricação de carros. Faz parte da natureza do produto. A Nissan estava em sérias dificuldades quando assumi seu comando, em 1999. A companhia perdia 1.000 dólares em cada carro vendido nos Estados Unidos. Além disso, tinha dinheiro investido em suas próprias concorrentes. Muita coisa estava errada. Os europeus também já tiveram seu período de dificuldades. Várias marcas, como Land Rover, Aston Martin, Jaguar, Bugatti, Lamborghini e Rolls-Royce, foram incorporadas por grandes montadoras. O vital é que, enquanto algumas companhias vão mal, outras crescem e inovam.

Veja – Por que tantas montadoras entram em crise financeira ou até quebram?
Ghosn – Porque, embora fabricar carros exija planejamento e investimentos maciços, esse esforço enorme é feito em ambientes cada vez mais dinâmicos. Os anseios do consumidor mudam com rapidez, assim como as regras de emissão de poluentes, a tecnologia, o material, os mercados e os custos. Há cinco anos, por exemplo, o mercado chinês, o indiano e o russo não existiam. Hoje são os mercados em que as vendas de carros mais crescem no mundo, nos quais é preciso investir em inovação de produtos e formas de comercialização. Mas é preciso fazer isso com uma rapidez às vezes inatingível para companhias de estrutura rígida e acomodada. Esse é o desafio. Algumas montadoras vão ficar no caminho. É natural nessa nova realidade. Não há mais ilusão ou espaço para complacência. Mais de 50 milhões de carros são vendidos por ano no mundo. Qualquer montadora pode desaparecer e ninguém vai notar.

Veja – No que consiste essa nova realidade?
Ghosn – Montadoras na China e na Ín- dia planejam colocar no mercado automóveis de baixo custo por 2.000 dólares. E fazem isso com uma mentalidade frugal, com poucos recursos. Nós, e me refiro às montadoras tradicionais, nos esquecemos de criar sem gastar em excesso. Por acomodação, exigimos muito dinheiro, muita engenharia e muita tecnologia para fazer carros. Com isso nos acostumamos a desperdiçar dinheiro e tempo. Não sei dizer se é possível colocar um modelo popular à venda por apenas 2.000 dólares, mas temos de caminhar também nesse sentido. Não é uma opção, mas um imperativo. O mercado americano, o japonês e o europeu estão saturados e não vão crescer muito. O crescimento virá de algumas economias novas, principalmente Rússia, China, Índia, Oriente Médio e Sudeste Asiático. A China já é o terceiro maior produtor de carros no mundo, acabou de passar a Alemanha e perde apenas para os Estados Unidos e o Japão. Sua produção atingiu 7 milhões de unidades em 2006 (o Brasil produziu 2,6 milhões no mesmo período).

Veja – Na década de 80 as montadoras japonesas roubaram parte considerável do prestígio de Detroit. Os chineses e os indianos serão os japoneses do século XXI?
Ghosn – Não é tão simples assim. Em primeiro lugar, a história nunca se repete. Depois, não basta contentar-se em fornecer produtos para a base da pirâmide de renda quando, na China e na Índia, se observa uma mobilidade social intensa. O primeiro automóvel do consumidor indiano e do chinês pode ser barato, mas, assim que eles progredirem na vida, vão exigir modelos mais sofisticados. Por isso, uma montadora precisa manter-se em todos os segmentos com o objetivo de fidelizar o novo consumidor e acompanhá-lo em sua ascensão. Nisso ainda somos melhores. Também é preciso lembrar que o mercado de carros de luxo e modelos esportivos já cresce vertiginosamente na China e na Rússia. Uma montadora deve oferecer a esses países tanto modelos 4 por 4 quanto populares. As montadoras chinesas e indianas nos colocam um desafio, não uma ameaça. Os japoneses ainda lideram em produtividade e eficiência administrativa. Os europeus estão com boa saúde financeira. Os americanos vêm reagindo. Ninguém conhece o final desse filme.

Veja – A indústria de carros ainda é capaz de inovar em matéria de gestão?
Ghosn – Sim. Estamos entrando num sistema de administração moldado para o século XXI. Não é mais possível manter, dentro de uma organização que fabrique o mesmo produto, departamentos segmentados que não conversem entre si. Algumas montadoras foram as primeiras a entender isso. Engenheiros tendiam a resolver seus problemas só com engenheiros, sem conversar com os responsáveis pelos departamentos de vendas ou finanças. Os empregados americanos não conversavam com os colegas japoneses da mesma empresa, e assim por diante. O novo modelo de administração exigirá colaboração cruzada permanente para otimizar o conhecimento. A parceria Renault-Nissan é um símbolo desse novo tempo.

Veja – Como isso funciona na prática?
Ghosn – Quando estava na Nissan, estipulei uma meta de redução de 20% nos custos do departamento de compras. Defini que essa redução viria por meio de mudanças nas especificações das peças, já que usávamos critérios rígidos e caros demais. De início, os engenheiros disseram que seria impossível. Forçados a interagir com profissionais de outras áreas, no entanto, reconheceram que a Nissan pagava mais por lâmpadas que, embora fossem mais caras, tinham o mesmo desempenho das usadas pela concorrência. Os consumidores não viam diferença alguma entre elas. Deixados à própria sorte, os engenheiros nunca fariam essa mudança.

Veja – Muitos duvidam que seja possível administrar duas companhias ao mesmo tempo. Qual a sua rotina para tentar fazer essa mágica?
Ghosn – Na primeira semana de cada mês estou em Paris. É quando as decisões sobre a Renault são tomadas. Passo a terceira semana do mês em Tóquio, cuidando da Nissan. A segunda e a quarta semanas ficam em aberto. Posso estar em Tóquio, em Paris ou nos Estados Unidos. Isso porque não dá para fixar tudo: é preciso criar janelas para a flexibilidade. E montar uma estrutura para trabalhar no avião da companhia (um Gulfstream V intercontinental), onde minhas viagens duram, em média, doze horas. Além disso, tenho uma assistente de muito alto nível no Japão que administra o meu tempo para tudo. É ela a encarregada hoje de fazer com que todo mundo em torno de mim seja feliz.

Veja – O senhor já disse que demitir 21 000 pessoas não foi fácil, mas que era crucial para a sobrevivência da Nissan. Mesmo assim, o senhor não viveu um drama pessoal ao assinar essas demissões?
Ghosn – Esse tipo de conflito você tem de viver não depois de assumir a empresa, mas antes. Eu sabia que a Nissan estava doente e revitalizá-la iria me trazer decisões difíceis, que meus predecessores nunca assumiram. Mas, quando aceitei ir para o Japão, fui convencido de que minha missão seria fazer a empresa renascer. O pior problema do século XXI é que muitas pessoas querem funções de liderança, mas não querem problemas difíceis. Assumi uma postura difícil, mas me comprometi com ela. Se não desse certo, teria me demitido.

Veja – O sucesso do carro Prius realçou os esforços da Toyota na inovação de carros híbridos. Mas o senhor sempre foi muito cético com relação a esse tipo de veículo. Por quê?
Ghosn – Não sou cético quanto à tecnologia. Ela é promissora. Meu ceticismo diz respeito à lógica econômica. O custo do híbrido é bem mais elevado do que aquilo que o consumidor está disposto a pagar. É o caso dos híbridos vendidos em países como os EUA. Talvez sua comercialização em massa ainda não seja viável. Os consumidores são exigentes em matéria ambiental, mas não estão dispostos a pagar o preço dessa conta. A solução dos carros flex é melhor, pois não se trata de um carro híbrido, com duas estruturas, mas de um único motor movido por dois combustíveis.

Veja – Qual será o futuro do etanol?
Ghosn – A experiência brasileira será única. O país desenvolve essa tecnologia há décadas e possui condições climáticas e agrárias particulares que lhe permitem produzir etanol de forma muito competitiva. Não é o caso de outros países. Por isso, é mais provável que um número crescente de governos introduza o etanol apenas como mistura na gasolina, o que já será ótimo para o Brasil. Conheci a experiência brasileira de perto. Tive um Monza a álcool quando trabalhava para a Michelin, no Rio, em 1995. Funcionava direitinho.

Veja – Quando os carros elétricos e movidos a hidrogênio vão se tornar economicamente viáveis?
Ghosn – Os carros elétricos evoluíram muito, mas não o suficiente para justificar sua produção em massa. O custo da bateria ainda é alto e sua autonomia, baixa. Além disso, não há benefícios ambientais se a energia dos carros elétricos for gerada de uma maneira ambientalmente incorreta. Ou seja, não adianta tirar o problema ambiental do carro e jogá-lo na etapa anterior, na produção de eletricidade. Algumas alternativas estão sendo estudadas para solucionar esse problema. A geração de eletricidade por energia nuclear é uma delas. Já o hidrogênio terá uma importância enorme em algum momento, ainda muito distante, do século XXI. Por décadas será apenas uma tecnologia de nicho. A produção de hidrogênio ainda é cara e será preciso criar uma rede de abastecimento completamente nova.

Veja – Dada a ascensão da China e da Índia no cenário econômico mundial, qual é a relevância do Brasil para companhias como a Renault-Nissan?
Ghosn – O mercado interno brasileiro é muito cobiçado e o país exporta cada vez mais. Mas sua relevância econômica estará diretamente relacionada à capacidade de estabelecer novos acordos comerciais. O Mercosul foi um alento, assim como o acordo comercial do Brasil com o México. Hoje exportamos (Renault e Nissan) carros do Brasil para o México e importamos (a Nissan) carros do México para o Brasil. É bom para o país porque aumenta o fluxo comercial, e é bom para o consumidor brasileiro porque lhe é oferecido um carro originalmente desenhado para o mercado americano. Quanto mais parceiros comerciais o Brasil tiver, mais produtiva se tornará sua economia. Isso é um imperativo no mundo atual. A produtividade das montadoras brasileiras já melhorou muito, mas as asiáticas ainda estão mais bem posicionadas.

Veja – A Renault pretendia ter 10% do mercado brasileiro, mas hoje tem apenas 3%. O senhor está feliz com esse desempenho?
Ghosn – Não. E nem com o da Nissan no Brasil. Mas estou confiante. As grandes lições dos primeiros anos no Brasil são que, primeiro, vamos ter de trazer mais produtos, tanto da Nissan quanto da Renault. Isso vai acontecer. Segundo, as taxas de nacionalização da produção não são suficientemente agressivas. Precisamos aumentar a taxa de componentes feitos e comprados aqui, para diminuir despesas usando o potencial de competitividade de custos que existe no Brasil. Isso significa que é preciso trazer mais responsabilidade para a engenharia local e ter fornecedores locais. Depois, é preciso mais qualidade de serviços. Podemos fazer melhor. Estamos na média da indústria, mas temos de ficar acima da média.

Veja – Vale a pena gastar cerca de 300 milhões de dólares por ano para a Renault competir na Fórmula 1?
Ghosn – Só quando ganhamos o campeonato, como no ano passado.

Um comentário:

Anônimo disse...

os discursos inseridos nesse blog nao condiz com o ideario de uma direita democratica, e sim de uma direita tosca, raivosa e autoritária, tanto quanto esta esquerda que está no poder hoje. Voces precisam estudar mais filosofia politica.
um abraço
artur