29 junho 2011

Cadeia de erros

Como e por que o Legacy da Embraer bateu no Boeing da Gol e matou 154 pessoas

por Ivan Sant´anna
Um avião a jato não é uma mercadoria qualquer. Seu preço equivale ao capital de uma empresa de médio a grande porte. Um Legacy fabricado pela Embraer sai por 25 milhões de dólares. A entrega de uma dessas joias ao comprador é uma combinação de extensa burocracia com minuciosa verificação de especificações técnicas, acompanhadas de chique e austero cerimonial de celebração. Ninguém vende (ou compra) uma “empresa” de dezenas de milhões sem ao menos brindá-la com uma taça de champanhe.

O Embraer Legacy 600 foi apresentado ao público em junho de 2001. Baseado no Embraer 135, exibia vários aprimoramentos, inclusive tanques extras de combustível e winglets — uma graciosa dobra para cima, em forma de lâmina, com um ângulo de aproximadamente 80 graus — na ponta de cada asa. Seu sistema aviônico (o conjunto de instrumentos eletrônicos de comunicação, navegação, monitoramento do voo e indicadores meteorológicos) incluía um sofisticado TCAS.

Sistema de alerta e prevenção de colisões, o Traffic Collision Avoidance System, TCAS, passa à tripulação avisos sobre um possível tráfego aéreo em sentido contrário, aproximadamente quarenta segundos antes que o choque possa acontecer. Além de alarmes visuais e sonoros, o TCAS indica aos pilotos as manobras necessárias para evitar a colisão. Em resumo, o TCAS permite que aeronaves voando uma em direção à outra “conversem” entre si, como que dizendo: “Você sobe e eu desço.”

Para que o TCAS funcione, é preciso que ambos os aviões sejam equipados com o aparelho e que, obviamente, estejam ligados. É preciso também que os transponders (o sistema que emite sinais para os controladores em terra, indicando dados do voo e identificação da aeronave) tenham sido ativados. Sem transponder, um avião perde seu tcase se torna uma ameaça pairando no ar. Não foi à toa que uma das primeiras providências dos pilotos camicases do 11 de Setembro foi desligar os transponders dos quatro Boeings que sequestraram.

Após as negociações de praxe, a empresa de táxi-aéreo ExcelAire decidiu comprar, da Embraer, jatos EMB-135BJ Legacy para incorporá-los a sua frota. A entrega da primeira unidade foi combinada para a última semana de setembro de 2006. Para trasladar o avião de São José dos Campos para Fort Lauderdale, na Flórida, com escala em Manaus, o setor operacional da ExcelAire escolheu os pilotos Joseph (Joe) Lepore, de 42 anos, e Jan Paul Paladino, de 34.

Eles chegaram ao Brasil na segunda-feira, 25 de setembro de 2006, e tinham previsão de volta, pilotando o Legacy novinho em folha, no sábado da mesma semana. Lepore e Paladino tinham quatro dias de treinamento pela frente, de modo que pudessem fazer, com segurança, a longa jornada de retorno para casa.

O Legacy 600 vendido pela Embraer à ExcelAire recebeu o prefixo americano N600XL, já que a bandeira do jatinho seria a dos Estados Unidos. Na linguagem aeronáutica, usada por pilotos e controladores no mundo inteiro, N600XL é November Six Hundred X-Ray Lima.

Nos dias 26, 27 e 28 de setembro, além de planejarem o voo de traslado, estudando cartas aeronáuticas que haviam trazido para o Brasil, Joe Lepore e Jan Paladino, acompanhados de instrutores da Embraer, pilotaram o X-Ray Lima três vezes no espaço aéreo próximo a São José. Nessas ocasiões, se alternaram na poltrona da esquerda do cockpit, a de comandante, posto que, por sinal, Paladino, tal como seu colega, ocuparia nas operações rotineiras da ExcelAire.

Durante os testes, Lepore, pouco ambientadocom o Legacy, preferiu não fazer a manobra de estol (perda de sustentação), na qual o avião, literalmente, despenca por alguns segundos. Deixou a tarefa para Paladino, que tinha muito mais experiência em jatos da Embraer.

Havia um obstáculo a ser vencido: embora, naquela mesma semana, Lepore e Paladino tivessem voado juntos no Legacy, isso acontecera com o acompanhamento de instrutores. São José–Manaus–Fort Lauderdale seria a estreia da dupla voando por conta própria.

Nas instalações da Embraer, engenheiros da fábrica treinaram os americanos no uso do software do Legacy, programa esse que foi instalado em um laptop a ser usado na viagem. O software incluía dados sobre a rota, inclusive particularidades do aeroporto de Manaus, primeiro ponto de escala do percurso, onde os pilotos e passageiros do X-Ray Lima pernoitariam e onde haveria a liberação alfandegária do jato.

Já na quarta-feira, dia 27 de setembro, a ExcelAire, após ver cumpridas algumas exigências que fizera de alteração no radar meteorológico, reparos na válvula de descongelamento e retoques na pintura do November Six Hundred X-Ray Lima, considerou o jato em condições de recebimento. O voo de volta para os Estados Unidos foi antecipado de sábado, dia 30, para sexta-feira. A decolagem ocorreria logo em seguida à cerimônia de entrega.

No dia da partida, Lepore e Paladino se juntaram aos seus companheiros de voo: os executivos da ExcelAire Ralph Anthony Michielli e David Rimmer; Henry Arthur Yandre, representante da Embraer na Flórida; Daniel Bachmann, funcionário brasileiro da Embraer; e o jornalista Joseph (Joe) Sharkey.

Bachmann iria só até Manaus, onde se encarregaria do desembaraço aduaneiro do X-Ray Lima. Já Joe Sharkey, que morava em Nova Jersey, era o passageiro mais ilustre – ele escrevia, para jornais e revistas americanos, artigos sobre aviação executiva e empresas de táxi-aéreo, sendo inclusive colaborador do New York Times, com uma coluna semanal – “On the road” –no caderno de viagens. David Rimmer, da ExcelAire, lhe oferecera uma carona no voo inaugural do Legacy, aceita prazerosamente por Sharkey.

Nessa viagem ao Brasil, o jornalista fazia uma matéria para a revista Business Jet Traveler. Um comentário favorável de Sharkey sobre o Legacy ou sobre a ExcelAire seria uma ótima propaganda gratuita para as duas empresas.

De um detalhe Michielli e Rimmer, os sócios da ExcelAire, faziam questão: o horário de decolagem não poderia ultrapassar as 14 horas. A última coisa que eles queriam era sobrevoar a região amazônica durante a noite.

Às 13h15, os cinco passageiros se dirigiram para a aeronave, que fora rebocada para o pátio de estacionamento do aeroporto e abastecida. O comandante Lepore já estava a bordo, cuidando da checagem rotineira pré-voo. Enquanto isso, o copiloto Jan Paladino permanecia na sala de entrega, com um engenheiro da fábrica, familiarizando-se com os cálculos de peso e balanceamento do Legacy, reunidos no software carregado no laptop de Paladino. O plano de voo do N600XL já fora providenciado pela Embraer. Esta o terceirizara para a Universal Weather & Aviation Inc., de Houston, no Texas, especializada em serviços de apoio à aviação.

Além dos diferentes rumos da primeira perna do voo, São José–Manaus, constavam do plano as altitudes de cruzeiro correspondentes: 37 mil pés (nível 370) na aerovia UW2, de mão única, entre São José dos Campos e Brasília; 36 mil pés (nível 360), na aerovia UZ6(mão dupla), entre Brasília e um ponto virtual denominado Teres, a 480 quilômetros a noroeste da capital federal; e 38 mil pés (nível 380), também na mão dupla da UZ6, entre Teres e Manaus.

Tal como determinam as regras aeronáuticas brasileiras, a partir de Brasília, ao tomar o rumo norte, em aerovia de mão dupla, o November Six Hundred X-Ray Lima se manteria sempre em níveis pares. Como do norte para o sul as aeronaves são obrigadas a voar em níveis ímpares, essa regrinha simples impede uma colisão. Níveis 360, 380, 400 etc. para o norte; 350, 370, 390… para o sul.

Na primeira chamada que o N600XL fez à torre do aeroporto, esta lhe passou a indicação da pista em uso e o instruiu sobre o taxiamento até a cabeceira. Os pilotos receberam também o código do transponder, 4574, através do qual seriam identificados nas telas de radar de solo, acompanhado da informação sobre a altitude do jato.

De posse do código, o Legacy, ainda parado no pátio, foi liberado pelo controlador de São José dos Campos a voar no nível 370 (37 mil pés) “até o Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus”. Na verdade, o Cindacta 1,em Brasília,havia autorizado o 370 (tal como dispunha o plano de voo para a primeira perna da viagem), mas não havia dito que tal altitude deveria ser mantida até Manaus.

Paladino não questionou a instrução, que, no entanto, não obedecia ao plano elaborado pela Universal para a viagem. Limitou-se a acusar seu recebimento:

– November Six Hundred X-Ray Lima, liberado para o Eduardo Gomes, nível de voo três sete zero.

Após ter falado com o Legacy, o controlador chamou Brasília. Usou linguagem coloquial e agiu como se o pedido de manutenção da mesma altitude durante toda a rota tivesse partido do N600XL.

– Oi, Brasília, o November Meia Zero Zero X-Ray Lima para Eduardo Gomes, São José–Eduardo Gomes, solicitando o nível três sete zero.

Brasília não contestou.

O nível 370 não só contrariava o plano de voo preestabelecido como também as normas de altitude nos sentidos sul–norte e norte–sul. Felizmente, o Legacy era equipado com o sistema anticolisão TCAS, que alertaria os pilotos na hipótese de tráfego em sentido contrário.

Enquanto taxiavam, o copiloto, respondendo a uma indagação do controlador, informou que havia “seis almas a bordo” (six souls on board). Mas logo corrigiu: “Sete almas”, ao se lembrar da presença do jornalista e carona Joe Sharkey. Um minuto depois, o N600XL decolou para Manaus, 2,7 mil quilômetros a noroeste.

Quando atingiu 8 mil pés, o Legacy foi autorizado a continuar a subida. Recebeu também instruções para contatar a frequência do Centro de Controle de Área de Brasília, onde um operador observava a movimentação do X-Ray Lima, representado pelo código 4574 em seu monitor de radar. Na tela escura, um círculo rodeava o bloco de dados do Legacy, em aviação conhecido como “alvo”, composto de algarismos e letras brancas. A existência do círculo era sinal de que a aeronave emitia sinais secundários de radar. Portanto, seu transponder funcionava perfeitamente.

Após passar pelo nível 200, e permanecer um pouco no nível 310, aguardando a resolução de conflito de tráfego com outra aeronave, o jato recebeu permissão para subir para 37 mil pés. No cockpit, Lepore e Paladino, sem familiaridade com as regras do tráfego aéreo brasileiro, entendiam, por causa da instrução inicial do controlador de São José dos Campos, que o nível 370 deveria ser observado até o destino.

Sem que Brasília percebesse o erro, o N600XL voava na contramão. Entretanto, isso não deveria se constituir em problema grave, uma vez que o transponder do X-Ray Lima logo iria enviar um sinal para as telas de radar do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo, o Cindacta 1, em Brasília, mostrando o alvo em nível incorreto. E, mesmo que nenhum desses sistemas e regulamentos redundantes funcionasse, o TCAS do Legacy cuidaria de indicar, aos pilotos, as manobras evasivas necessárias para desviar o jatinho de um possível tráfego em sentido contrário.

Desde o momento em que nivelaram o X-Ray Lima em 37 mil pés, Joe Lepore e Jan Paladino passaram a trabalhar em um laptop. Os pilotos tinham dúvidas sobre a performance do Legacy durante o pouso e a decolagem (esta, no dia seguinte) no Eduardo Gomes. Parte da pista do aeroporto estava interditada por causa de obras.

Em Brasília, o controlador do setor 07 não notou que o Legacy, sob sua responsabilidade, voava na contramão. No entanto, isso era claramente indicado na tela de seu console. O bloco de dados do X-Ray Lima mostrava: 370 (nível efetivo) = 360 (nível programado).

Exatamente às 19h02 Zulu (Z ou Zulu = hora de Greenwich, equivalente a 15h02 em Brasília e 14h02 em Manaus), o círculo ao redor do bloco de dados do Legacy desapareceu das telas do Cindacta 1, significando que o transponder fora desligado.

Sem se dar conta da perda do sinal secundário do avião, Brasília não chamou o Legacy pelo rádio. Enquanto isso, Lepore e Paladino continuavam “brigando” com o laptop, que se alternava no colo de um e de outro. Concentrados no problema da pista de Manaus, os dois não viram uma pequena mensagem branca em cada uma das telas principais do painel: TCAS OFF (TCAS desligado) era o que o aviso assinalava.

Sempre seguindo o eixo da aerovia UZ6, o jato atingiu a posição Teres. Lá, segundo o plano original de voo, ele deveria passar do nível 360 — no qual em momento algum voara — para o 380 (38 mil pés). Bloquearia então a posição virtual Nabol e seguiria até Manaus, fim da primeira etapa do voo de traslado.

Obedecendo à instrução inicial de São José dos Campos, de onde haviam decolado duas horas antes, Lepore e Paladino se mantinham em nível ímpar, o FL370, exclusivo do sentido norte–sul. Uma cópia do plano de voo feito pela Universal Weather, por encomenda da Embraer e aprovado pelo centro de Brasília antes da decolagem, permanecia disponível em um escaninho entre os dois pilotos. Também à disposição deles estavam as cartas aeronáuticas, nas quais eram especificados os níveis corretos de voo nos dois sentidos verticais da via de mão dupla.

O Legacy persistia na contramão.

Em Nabol, terminava a área de vigilância do Cindacta 1 (Brasília) e tinha início a do Cindacta 4 (Manaus), sendo esta segunda a responsável pelo tráfego aéreo na região amazônica. Além de estar no nível errado, o Legacy entrara numa zona de transição, crítica para as transmissões de rádio, que muitos pilotos chamam de buraco negro. Nela, às vezes os aviões não conseguem falar com os controladores, e vice-versa. Era justamente o que acontecia com o copiloto Paladino, que tentava chamar os centros de terra:

–November Six Hundred X-Ray Lima, November Six Hundred X-Ray Lima – Paladino repetia ao microfone.

Nada. Nenhuma resposta.

Havia 54 minutos, o transponder e, por conseguinte, o dispositivo anticolisão TCAS permaneciam desligados, sem que os controladores de tráfego aéreo e a dupla Lepore e Paladino percebessem. Então, às 19h56m54 Zulu, quando o Legacy cruzava a selva, acima do território do município mato-grossense de Peixoto de Azevedo, algo misterioso e apavorante aconteceu.

Ouviu-se na cabine de comando um som seco de impacto, captado pelos microfones CAM (Cockpit Area Microphones) e registrado numa das caixas-pretas, o CVR (Cockpit Voice Recorder), gravador de vozes da cabine de comando. O avião deu uma abrupta guinada para a esquerda.

Seguiram-se dois gemidos do comandante Lepore, “Uh, oh”, a desconexão imediata do piloto automático e três avisos estridentes (chimes) de alarme.

– What the hell was that? (Que diabos foi isso?) – Lepore perguntou.

– Nós perdemos um dos winglets (dobra para cima da ponta da asa) – respondeu o copiloto, assustado, mas não em pânico.

– Did we? (Perdemos?) Where the fuck did he come from? (De que porra de lugar ele veio?) – Joe Lepore percebeu que haviam colidido com alguma coisa. – O.k., vamos descer, declarando uma emergência.

Foi a vez de Paladino gemer:

– Uh.

Lepore falou ao microfone:

– Brasília, Rádio Brasília, Brasília, November Six Hundred X-Ray Lima.

Paladino avisou o comandante que este deveria usar a frequência de emergência.

– Vinte e um cinco (referia-se a 121,5 mega-hertz).

Lepore, que não se esquecera disso, confirmou:

– Vinte e um cinco.

– Precisamos manter a velocidade baixa – sugeriu o copiloto. E tentou minimizar o incidente:

– Nós não estamos com uma descompressão explosiva – Paladino fez valer sua maior experiência em jatinhos da Embraer.

– Fuck it – o CVR registrou o “comentário” do comandante. Mas logo sua voz ficou calma e clara quando ele voltou a chamar Brasília.

– Brasília, Brasília, November Six Zero Zero X-Ray Lima, emergência.

Sentado numa das poltronas da cabine de passageiros, o vice-presidente executivo da ExcelAire, David Rimmer, sentira o forte sacolejo, viu que a ponta da asa esquerda desaparecera e, por via das dúvidas, levantou-se e foi até o cockpit informar os pilotos.

A pergunta-palavrão veio agora de Paladino:

– Where the fuck did he come from?

As lembranças do colunista Joe Sharkey foram, dias depois, registradas em um artigo de jornal:

“Sem aviso, senti um terrível solavanco e ouvi uma batida forte, seguidos de um silêncio assustador, a não ser pelo zumbido dos motores. E então duas palavras das quais jamais me esquecerei: ‘Fomos atingidos’, disse Henry Yandle, um dos companheiros de viagem, de pé no corredor próximo à cabine de comando do jato Embraer Legacy 600.”

Sharkey levantou a cortina plástica da janela. Viu que o dia ainda estava claro, embora com o sol se avermelhando e já próximo à linha do horizonte. Viu também o verde-escuro da floresta, se estendendo até onde os olhos podiam distinguir. Na extremidade da asa, em lugar do winglet, havia um rasgão indecente e irregular, com fiapos de fibra de carbono tremulando ao vento.

Nenhum deles, nem passageiros nem aviadores, sabia que o pior acontecera lá atrás. O leme e o estabilizador esquerdos, no alto da cauda, também haviam sido danificados, comprometendo a aerodinâmicae a dirigibilidade do avião.

Para compensar a assimetria provocada pelos danos e avarias, os pilotos precisaram torcer o manche 45 graus para a direita. Só assim evitaram que o Legacy girasse para o outro lado, sobre o próprio eixo, movimento que poderia resultar num mergulho em parafuso. Com muito custo, conseguiram dominar o animal indócil e desconhecido no qual o X-Ray Lima se tornara.

O Legacy se encontrava a mais de mil quilômetros de seu destino, Manaus. Tudo fazia crer que dificilmente a alcançaria naquele estado crítico. A prioridade dos pilotos passou a ser a de achar um aeroporto que lhes permitisse um pouso de emergência.

– Que porra nós atingimos? – ainda perplexo com o incidente, Lepore perguntou a Paladino e a si próprio. Mas logo voltou a pensar nos centros de auxílio de terra. Apertou, no manche, o botão do microfone e transmitiu, às cegas, para qualquer um que pudesse ouvir:

– Brasília, Brasília, November Six Hundred X-Ray Lima. Temos um problema estrutural. Mayday, mayday– completou.

Se valendo das cartas aeronáuticas e do plano da Universal, descobriram a Base Aérea do Cachimbo. A distância de onde se encontravam até Cachimbo foi estimada em 180 quilômetros, pouco mais do que vinte minutos de voo, mesmo tendo de reduzir a velocidade do jato para não comprometer ainda mais sua estrutura.

Exatamente às 20h21m42 Zulu, após os 25 minutos mais excruciantes de suas vidas, Lepore e Paladino enxergaram ao longe, na diagonal, a pista de Cachimbo. Avaliaram seu comprimento, receberam autorização da torre e iniciaram os procedimentos de pouso, que incluíram uma curva bem ampla, e pouco inclinada, de aproximação, para não forçar a asa avariada. No cockpit, alguns alarmes soaram, lembrando-os das irregularidades aerodinâmicas do X-Ray Lima.

Mesmo com a dobra da ponta da asa esquerda arrancada, e sem parte da cauda (aleijão que os aviadores desconheciam), o Legacy conseguiu pousar, tocando o solo a 200 quilômetros por hora. O arredondamento (perda de sustentação que precede o toque) se deu com suavidade e segurança, apesar de os americanos terem optado por não usar os flaps, com receio de que estivessem com defeito. Os freios, entretanto, foram usados ao máximo.

Quando o avião já estava quase parando, Paladino virou-se para Lepore e limitou-se a dizer:

– We’re alive (Estamos vivos).

Assim que o Legacy parou completamente, bem antes do final da pista pavimentada de Cachimbo, uma viatura de apoio da base aérea veio e se posicionou à sua frente. Bastou aos pilotos Lepore e Paladino a seguirem taxiando até o pátio de estacionamento, onde os motores do jato foram desligados. Eram 20h33 Zulu, 15h33 no fuso horário do oeste do Pará, onde fica a base.

Quando desceram do avião, tripulantes e passageiros levaram um enorme susto ao ver que, além do winglet esquerdo decepado, um impacto na ponta da cauda danificara o conjunto estabilizador/profundor, que perdera algumas de suas superfícies móveis.

Minutos após o pouso do X-Ray Lima, Cachimbo recebeu um telefonema de Manaus. O comandante do Cindacta 4 queria falar com o piloto do Legacy. Lepore, que se encontrava num dos prédios da base, foi posto na linha. Um gravador registrou a conversa.

O oficial, após se identificar, explicou, em inglês, que estava coletando informações para descobrir o que havia ocorrido. Indagou sobre a localização do Legacy na hora do impacto.

– Mais ou menos a 100 milhas de Cachimbo — esclareceu Lepore.

– Em que nível você estava? – quis saber o comandante do Cindacta.

– Três sete zero – respondeu o comandante.

– Nivelado a três sete zero? – o oficial quis ter certeza.

– Nivelado a três sete zero – Joe Lepore confirmou.

– The TCAS System was turned on? (O TCAS estava ligado?) – o militar passou ao próximo item de seu interrogatório.

– Não – disse Lepore.

– Não? – Manaus quis ouvir de novo.

– No,it wasn’t (Não, não estava) – a resposta de Lepore foi clara.

– Sem TCAS – o oficial comandante conduzia com habilidade suas perguntas, de modo que tudo ficasse registrado.

– The TCAS was off. (O TCAS estava desligado.) – Lepore voltou a confirmar, mas logo em seguida mudou sua versão. – The TCAS was on. (O TCAS estava ligado.)

O comandante militar não pôs em xeque a contradição.

– O.k. – aceitou.

E prosseguiu perguntando:

– Mas não houve nenhum sinal (de alerta de colisão), certo?

– Não, nós não recebemos nenhuma advertência [do TCAS] – Lepore concordou.

– O.k.! TCAS for sure was turned on, o.k.? (O.k.! Com certeza o TCAS estava ligado, o.k.?) – o oficial em comando do Cindacta 4 era insistente.

– O.k. – confirmou o comandante.

Manaus quis saber se o N600XL já passara da área de atuação do Centro de Controle de Área Brasília para a do centro de controle amazônico na hora do incidente e quais as frequências de rádio usadas pelos pilotos. Lepore deu as informações e relatou suas dificuldades de comunicação com os controles de terra, que não haviam respondido a suas chamadas.

Após a ligação telefônica entre Cachimbo e Manaus, Lepore, Paladino e seus cinco passageiros foram levados ao alojamento de oficiais da base, onde lhes serviram cerveja gelada.

Por volta das sete e meia da noite, o oficial em comando da base aérea de Cachimbo informou ao grupo que um Boeing 737 comercial, com mais de 150 pessoas a bordo, desaparecera no mesmo local, na mesma hora e no mesmo nível de voo em que eles haviam sido atingidos.

O Gol 1907 decolou às 13h35 (hora de Manaus), tendo a bordo 148 passageiros(dos quais 144 brasileiros, um francês, um alemão, um português e um americano) e seis tripulantes. O destino final do voo era o Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, com escala em Brasília, onde a tripulação seria trocada.

Durante a subida até 20 mil pés, o comandante Décio Chaves Júnior e o copiloto Thiago Jordão observaram, em suas atitudes e conversas, as condições de sterile cockpit, conforme é praxe nas companhias aéreas mais exigentes. Isso significa obedecer a regras rígidas de se concentrar nos procedimentos de pilotagem, sem contar piadas, sem falar de futebol ou mal do patrão. O mesmo acontece nas descidas para aproximação e pouso, abaixo do mesmo nível 200.

O avião de prefixo Golf Tango Delta ultrapassou os 20 mil e continuou subindo. Quando chegou ao nível 370, o Boeing foi estabilizado, iniciando o voo de cruzeiro.

Como estavam bem acima da área fixada para o padrão severo do sterile cockpit, Chaves e Jordão podiam relaxar. Se alguma aeronave viesse na direção do Boeing, o TCAS acusaria sua presença na tela e passaria aos pilotos as instruções necessárias para uma manobra evasiva.

Sem nada para se preocupar, comandante e copiloto examinavam fotos no visor de uma câmera digital. Elas haviam sido tiradas nos Estados Unidos.

– A foto do carro você não me mostrou — disse um deles. Sua voz ficou registrada na caixa-preta.

– Essa eu já te mostro – respondeu o companheiro.

– Essa foto aí é da bicicleta?

– Isso.

Nesse instante, às 19h56m54 Zulu, ouviu-se na cabine de comando uma pancada e sentiu-se um tranco forte. O nariz do Boeing guinou violentamente para a esquerda e uma sequência infernal de alarmes começou a soar.

Quando o Gol 1907 sofreu o impacto com algo que seus pilotos não viram, e muito menos puderam identificar, a aeronave voava a 460 nós (850 quilômetros por hora). Naquele instante, o Golf Tango Delta saía do espaço aéreo do centro amazônico e entrava no do Setor 6 do Cindacta 1, de Brasília.

Enquanto uma profusão de alarmes disparava no cockpit, o Boeing perdeu sustentação. Sem um terço da asa esquerda, a aerodinâmica do jato ficou totalmente comprometida. Ferido de morte, o Tango Delta inclinou-se para o lado do toco de asa e começou a afundar, girando em parafuso. Um forte ângulo de descida logo se transformou em mergulho vertical.

– O que aconteceu? – o CVR registrou a pergunta agoniada do comandante.

– Ai, meu Deus do céu – limitou-se a gemer o copiloto.

– Calma, calma – Décio Chaves fez das tripas coração para manter o autocontrole, enquanto o som dos alarmes aumentava de intensidade.

– Aiii! – um último grito de desespero foi seguido, na captação dos microfones da caixa-preta, pelo ruído forte de deslocamento de ar.

Jamais se saberá se algum passageiro ou comissário chegou a perceber o que havia acontecido. O provável é que os giros do parafuso, aliados ao mergulho do Boeing, tenham desnorteado completamente as mais de 150 pessoas a bordo.

No momento da colisão a 37 mil pés, ninguém morreu. Pois não houve um movimento inercial em direção às poltronas à frente de cada um. A força do impacto se concentrou na parte inferior da asa atingida.

Enquanto o Tango Delta despencava, na cabine de comando Décio Chaves e Thiago Jordão fizeram de tudo para amenizar a queda. Os manetes foram reduzidos para idle [ponto morto], os trens de pouso, baixados, assim como baixados os flaps. Os spoilers se abriram (apurou-se isso mais tarde, pela leitura do gravador dos parâmetros de voo) nas partes que restavam de asas. Nada disso impediu, nem teria como impedir, que o avião amputado continuasse girando e caindo.

Finalmente, a estrutura do 737 não suportou as forças que a trituravam. O Gol Uno Nove Zero Sete se desmanchou no ar. Seus milhares de componentes, seus 148 passageiros e seis tripulantes continuaram desabando até se espatifarem nas árvores da floresta tropical no município de Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso. Em poucos segundos, as copas das árvores, tais como cortinas ao final de uma tragédia, se fecharam sobre os destroços e as vítimas, encobrindo-os pudicamente.

A subida do November Six Hundred X-Ray Lima até 37 mil pés foi acompanhada por um operador de radar do Cindacta 1. Embora tivesse trocado diversas mensagens com o Legacy, em nenhum momento o profissional de terra informou sobre a alteração de nível no bloqueio de Brasília, tal como constava do plano de voo, cujos dados apareciam na tela do controlador.

Quando, finalmente, o Legacy atingiu a altitude para a qual fora autorizado por João Batista da Silva, o suboficial de serviço na torre de São José dos Campos, o comandante Joe Lepore selecionou o dispositivo altitude hold, que mantém a altitude no piloto automático da aeronave. Isso aconteceu aos 26 minutos de voo e foi passado para Brasília pelo copiloto Jan Paladino.

– November Six Hundred X-Ray Lima, level… Flight level 370 – informou Paladino, embaralhando-se um pouco com a fraseologia.

– Roger, squawk ident, radar surveillance, radar contact – respondeu o controlador de Brasília, querendo dizer com isso que o N600XL deveria se identificar, apertando um botão associado ao transponder. Esse botão faria surgir, para a vigilância de radar do Cindacta 1, o símbolo eletrônico do Legacy.

Paladino não entendeu o inglês do operador.

– I’ve no idea what the hell he said (Não faço a menor ideia de que diabo ele disse) – o copiloto comentou com Lepore.

E a identificação não foi passada para Brasília, o que só iria acontecer um pouco mais tarde.

Enquanto o Legacy e o Cindacta 1 tentavam se entender, a 2,1 mil quilômetros a noroeste o Boeing 737-800 da Gol, prefixo PR-GTD, decolava do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus, com destino a Brasília. O nível de voo solicitado por seu comandante, Chaves Júnior, fora o 370, compatível com as normas da aerovia UZ6.

Quando interceptou o centro da nova aerovia, a UZ6, o Legacy fez uma suave curva de 30 graus à esquerda e tomou o rumo 336 graus, manobra executada pelo piloto automático. A mudança ficou gravada no FDR (Flight Data Recorder, que registra os parâmetros de voo), uma das duas caixas-pretas do avião. Mas a outra caixa-preta, o CVR (gravador de vozes do cockpit), não captou nenhuma troca de observações entre Lepore e Paladino a respeito da mudança de proa.

Ao longo de sua conversa, Lepore e Paladino tampouco nada disseram sobre o combustível consumido até aquele momento, nem conversaram sobre as estimativas de tempo de voo restante, tudo isso bê-á-bá da rotina de qualquer aviador. Os dois continuaram presumindo que o nível 370 valia até Manaus, sem conferir isso com a “carta de rota” – que mostrava claramente o critério de níveis par e ímpar —, da qual havia um exemplar num escaninho do cockpit.

Permaneciam concentrados no estudo do software do laptop, calculando os dados da decolagem do dia seguinte em Manaus. Essa indiferença em relação ao que realmente importava no momento, não acompanhando o desenrolar da navegação, revelou deficiência de airmanship por parte deles.

Airmanship é o correspondente aéreo ao termo em inglês seamanship, usado há séculos pelos navegantes, nome que se dá à arte de se conduzir um navio de modo seguro e vigilante, obedecendo às leis marítimas e de acordo com as condições do mar e dos ventos. Airmanship e seamanship são uma mistura de ciência, disciplina, experiência e dom.

Se, nos ares, pouca ou nenhuma atenção se deu à proa e à altitude do Legacy, o mesmo se pode dizer de terra. O sargento Jomarcelo Fernandes dos Santos, responsável pelo voo do jato, não era o que se poderia chamar de profissional exemplar. Segundo a Aeronáutica, em seu relatório A-022/Cenipa/2008, ele sentia dificuldades quando o volume de tráfego aéreo aumentava. Ainda de acordo com o mesmo relatório, a fluência do sargento em inglês era “não satisfatória”.

Naquela tarde de sexta-feira, Jomarcelo se concentrava principalmente em uma aeronave da FAB, também sob sua responsabilidade, em missão de prospecção de imagens radar a nordeste de Brasília. Talvez por isso o sargento não tenha dado importância ao fato de que o Legacy se mantinha no nível 370. Como recebera o avião antes do local designado para isso, Jomarcelo pode ter se confundido e achado que já confirmara, com o piloto, a diferença de altitude das etapas correspondentes às aerovias UW2e UZ6.

Às 19h01 Zulu, o círculo ao redor da etiqueta do November Six Hundred X-Ray Lima subitamente desapareceu da tela do sargento. No item “altitude” do bloco de dados, o sinal “igual” foi substituído pela letra z, significando que, a partir daquele momento, a altitude exibida era apenas uma estimativa e não um dado preciso.

Jomarcelo não notou as alterações. Ou, se notou, nada fez para alertar os pilotos do Legacy. Simultaneamente, 65 quilômetros a noroeste, no painel do X-Ray Lima surgiu a mensagem TCAS OFF.

A ausência do círculo e o Z em lugar do “igual” na tela de Jomarcelo dos Santos, assim como os dizeres TCAS OFF à frente de Lepore e Paladino, eram sinais inequívocos de que o transponder do Legacy fora desligado. O Cindacta agora recebia sinais primários de radar, sem a menor precisão no quesito “altitude”. Como, tanto em terra como no ar, ninguém deu mostras de perceber a anormalidade, Brasília não chamou o Legacy e o Legacynão chamou Brasília.

Quando terminou o turno do sargento Jomarcelo, assumiu em seu lugar o controlador Lucivando Tibúrcio de Alencar, também sargento. Ao passar o serviço, Jomarcelo nada disse a Lucivando sobre o fato de que um dos voos sob sua responsabilidade, o do November Six Hundred X-Ray Lima, não emitia sinais secundários de radar, ou seja, sinais de transponder.

Já em seu nível de cruzeiro, 37 mil pés, o Boeing 737-800 da Gol sobrevoava a região de floresta cerrada no sul do estado do Amazonas, entre os rios Abacaxis e Maués-Açu, afluentes do Madeira.

Quando o transponder do Legacy foi desligado, seu sinal secundário de radar, com informações precisas sobre os dados do voo, inclusive e principalmente sua altitude exata, deixou de ser enviado não só para os centros de controle de terra como também para as aeronaves que voavam nas proximidades. O Legacy tornou-se um espectro difuso na vastidão do espaço aéreo.

O copiloto Paladino permanecia trabalhando no laptop quando o transponder saiu do ar, e Lepore pilotava o avião nesse momento. Onze minutos já haviam se passado desde que o Legacy se comunicara pela última vez com os controles de terra.

Paladino continuava preocupado com a decolagem em Manaus.

– Estou estimando um vento de frente de 5 nós – explicou ele ao comandante, sempre de olho na tela do laptop em seu colo.

– Acho que vai dar para usar tanque cheio – respondeu Lepore.

Às 19h01 Zulu, Joe Lepore, inadvertidamente, ao manusear sua RMU (Radio Management Unit), dispositivo de operações de rádio e comunicações, apertara o quarto botão da esquerda (de cima para baixo), por duas vezes num intervalo de vinte segundos, rompendo as defesas do aparelho contra um comando acidental. Com o duplo toque, o transponder saíra da posição correta, TA/RA (Traffic Advisory/ Resolution Advisory – modo de informação de tráfego/resolução de conflito de tráfego), para o módulo stand-by (espera).

Imediatamente, o aparelho deixou de transmitir sinais de radar para o exterior, refletindo apenas os que recebia. Nem Lepore nem Paladino notaram as mensagens TCAS OFF e stand-by, inertes, em branco pálido, sem piscar, em suas respectivas telas. Para piorar, nenhum alarme soou no cockpit, alertando os pilotos americanos de que o avião agora voava às cegas, sem detectar eventuais tráficos em rota de colisão.

À primeira vista, poderia se afirmar que dois aviões voando em sentido contrário, pela mesma aerovia, e na mesma altitude, têm tudo para se chocar de frente. Acontece que a UZ6, percorrida pelo Gol 1907 e pelo N600XL, tem 80 quilômetros de largura. O normal seria os dois jatos se cruzarem sem que os pilotos do Legacy e do Boeing, mesmo que estivessem olhando para fora, vissem a passagem um do outro.

Isso se não fosse a incrível precisão dos instrumentos modernos de navegação aérea. A altitude de voo tanto do Boeing como do Legacy era de exatos 37 mil pés. Os dois percorriam o eixo mais do que acurado da aerovia, sem nenhum desvio horizontal.

Se, por inspiração do demônio, os comandantes Chaves Júnior e Lepore e seus copilotos tivessem planejado e calibrado em seus instrumentos de bordo para aquele roçar de asas, não teriam conseguido. Segundo descrição da revista Vanity Fair, foi como se dois índios, um em cada extremidade de uma aldeia, e sem saber o que o outro estava fazendo, lançassem flechas para cima e elas se tocassem levemente no ar.

Para sorte dos sete ocupantes do Legacy, um ligeiro desvio, quem sabe provocado por uma quase imperceptível turbulência que logo o piloto automático iria corrigir, fez com que os dois aviões não se chocassem exatamente de frente, nariz contra nariz. O winglet da ponta da asa esquerda do Legacy triscou na asa do Boeing, decepando-a em parte. O enorme jato comercial caiu e o jatinho executivo, mesmo ferido, seguiu em frente.

De nada serve a precisão dos instrumentos de bordo se eles não estão ligados. E isso foi o que aconteceu com o transponder do Legacy, posto inadvertidamente em stand-by por um dos pilotos, logo após o jato cruzar a vertical de Brasília. Sem transponder, o X-Ray Lima ficou sem TCAS. Este, por estar desativado, não pôde “conversar” com o TCAS do Gol Uno Nove Zero Sete.

Não fosse o desmazelo a bordo do Legacy, os dois TCAS, após trocar informações, decidiriam que uma das aeronaves iria subir e a outra, descer. Um alarme soaria em cada cockpit, seguido do surgimento de uma área verde no indicador de velocidade vertical (climb) de cada um dos dois jatos. Se a área verde ficasse na parte de cima do visor do instrumento, o avião deveria subir. Se na parte de baixo, descer. E sempre divergente do TCAS da outra aeronave. “Eu desço e você sobe”, ou vice-versa, é a regra.

A inoperância do transponder do N600XL também impediu que os radares dos centros amazônico e de Brasília – o Legacy e o Boeing trocavam de área naquele momento – percebessem que os dois voavam um de encontro ao outro.

As aeronaves colidiram na velocidade somada de 1,6 mil quilômetros por hora. Cada uma tinha a outra ligeiramente à sua esquerda. O plano da asa do Boeing estava pouco menos de 1 metro acima do da asa do Legacy. Nenhum dos quatro pilotos percebeu a aproximação do outro avião. Não houve tentativas de manobras de escape.

Além do winglet esquerdo, as pontas do mesmo lado do estabilizador e do profundor do Legacy também atingiram o Golf Tango Delta – o winglet no meio da asa do Boeing e o conjunto profundor/estabilizador na ponta do winglet esquerdo do Gol 1907. Foi, em suma, não mais do que um esbarrão, no qual o avião grande levou a pior, primeiro despencando em parafuso, depois se desintegrando no ar, caindo em mil pedaços na floresta lá embaixo.

A queda do Gol Uno Nove Zero Sete durou 63 segundos, durante os quais diversos alarmes soaram no cockpit e uma voz robótica, metálica, desprovida de emoção, avisou aos pilotos: “Bank angle” (algo como “cuidado com a inclinação”).

Em Brasília e Manaus, os controladores dos Cindacta 1 e 4, apreensivos, viram o bloco de dados emitido pelo transponder do Gol 1907 sumir de suas telas. Pouco depois, surgiram, bem nítidos, os sinais do transponder do November Six Hundred X-Ray Lima.

No Cindacta 4, em Manaus, o controlador Francisco Roberto Agostinho Freire aguardava a chamada do Legacy, que agora voava no espaço aéreo sob a jurisdição do centro amazônico. Era preciso coordenar o voo do jatinho em seu percurso final até o Aeroporto Eduardo Gomes.

Freire supunha, e não tinha razões para pensar diferente, que o X-Ray Limavoava no nível 360 (36 mil pés). Essa altitude não só era prevista no plano de voo do Legacy, como fora confirmada pelo Cindacta 1.

Embora o Gol 1907, voando em sentido contrário ao do Legacy, estivesse saindo da área de Manaus para a de Brasília, Freire continuava visualizando, com nitidez, em sua tela, o bloco de dados emitido pelo transponder do Boeing.

Às 19h57m10 Zulu (14h57m10, hora de Manaus), Freire podia ver que o 1907 se deslocava para o sul em uma velocidade horizontal regular de voo de cruzeiro de um Boeing 737-800: 460 nós (850 quilômetros por hora). Mas dez segundos depois, às 19h57m20, a velocidade caiu vertiginosamente para 290 nós. Tal redução, num espaço de tempo tão curto, era tecnicamente inviável, mesmo que os pilotos da aeronave tivessem desligado abruptamente os motores.

A única explicação possível era a de que o Gol, após ter colidido contra algo no céu, ou perdido uma asa, ou qualquer outra parte vital de sua estrutura, em vez de prosseguir em seu voo retilíneo, estivesse se projetando em direção ao solo. Isso ficou bem claro quando, passado mais meio minuto, o transponder do Boeing informou que a velocidade (horizontal, frise-se) caíra para apenas 20 nós (37 quilômetros por hora).

Os dados exibidos na tela do Cindacta 4 mostravam nitidamente que o Gol Uno Nove Zero Sete estava caindo. Mas, com a tecnicidade burra e fria das máquinas, o transponder simplesmente expunha os 20 nós. Era o que a tela de radar mostrava para Freire.

Quando o Golf Tango Delta, mergulhando em direção à floresta, rompeu a barreira do som, sua estrutura se desintegrou. Segundos depois, para profunda inquietude de Freire, o Gol 1907 sumiu da tela à sua frente. A angústia do controlador de Manaus era compartilhada por seus colegas de Brasília.

– Não há nenhum Gol! Não há nenhum Gol! O Gol desapareceu! – O desespero dos controladores do Cindacta 1 ficou registrado nas fitas de gravação do centro.

Assim que, no cockpit do Legacy, os pilotos sentiram o solavanco, e perceberam que o winglet da asa esquerda fora decepado, iniciou-se uma inversão na hierarquia de comando.

– What the hell was that? (Que diabos foi isso?) – Lepore pareceu perguntar mais a si mesmo do que a Paladino. Este imediatamente procurou acalmar o comandante:

– All right, just fly the airplane, dude (Tudo bem, simplesmente voe o avião, cara).

E repetiu:

– Just fly the airplane.

– Felizmente não houve uma descompressão explosiva – continuou Paladino, ao perceber que o sistema de pressurização do jato continuava funcionando normalmente. Lembrou isso ao comandante.

Pouco depois, sentindo que Lepore estava visivelmente abalado, e não raciocinava com a lucidez que a situação exigia, Paladino tentou, com tato, assumir a responsabilidade de conduzir o avião.

– Do you wanna fly, dude? Do you want me to fly it? (Você quer pilotar, cara? Ou quer que eu pilote?)

Lepore não disse que sim nem que não. Mudou de assunto.

– What? We got fucking hit? (O quê? Nós fomos atingidos?)– perguntou o comandante.

– I don’t know, dude, just let me… let me fly it (Eu não sei, cara, deixe-me… deixe-me pilotar) – Paladino agora tinha certeza de que o comando teria de ser dele.

Lepore mostrou-se aliviado.

– You got it? (Você o tem [nas mãos]?)

– Yeah. I can fly. Just keep an eye out for traffic (Sim. Eu posso voá-lo. Fique de olho no tráfego).

O November Six Hundred X-Ray Lima tinha um novo comandante, de fato. Paladino não perdeu tempo e deu a primeira ordem:

– O.k., declare uma emergência.

– Em que frequência, vinte e um cinco? – Lepore se submeteu mansamente. Por vinte e um cinco, ele se referia à frequência de emergência, 121.5 mega-hertz.

– Sim, vinte e um cinco – confirmou Paladino. – Seja lá o que tenha acontecido, temos de descer – concluiu, sentindo no manche e nos pedais que o avião estava seriamente ferido e não respondia prontamente aos comandos.

Foi então que Paladino percebeu, na parte superior esquerda de uma tela do painel à sua frente, a mensagem em branco TCAS OFF, aviso esse que estava ali havia 57 minutos, sem que nenhum dos dois pilotos tivesse notado.

Paladino respirou tão profundamente que o som do ar sendo aspirado e exalado de seus pulmões ficou registrado no CVR.

– Dude, you have the TCAS on? (Cara, o TCAS estava ligado?) – ele perguntou a Lepore.

– Yes, the TCAS is off (Sim, estava desligado) – Lepore, ainda com a mente embotada, confirmou e desmentiu na mesma frase.

– Vamos corrigir isso agora – disse Paladino, ao mesmo tempo que religava o transponder (e, por conseguinte, o TCAS).

Nas telas de radar dos Cindactas 1 e 4 (Brasília e Manaus) voltaram a aparecer, como que por encanto, os dados emitidos pelo Legacy. Eram 20h01m57 Zulu, 16h01 em Brasília e 15h01 em Manaus e no norte do estado do Mato Grosso, onde o Gol Uno Nove Zero Sete acabara de se espatifar na floresta.

Apesar da angústia que sofreu entre o instante da colisão e o pouso em Cachimbo, o desastre do voo 1907 revelou-se um bom negócio para Joe Sharkey, que, da noite para o dia, tornou-se uma pessoa conhecida nos Estados Unidos, frequentando inclusive talk shows de grande audiência.

Ao contrário de seus seis companheiros de voo (os dois pilotos, os dois executivos da ExcelAire e os dois da Embraer), que, talvez em respeito aos 154 mortos da outra aeronave, se mantiveram reservados, Sharkey tirou conclusões apressadas sobre o desastre, inclusive enaltecendo o profissionalismo de Joe Lepore e Jan Paladino.

Numa matéria com chamada na primeira página do New York Times, intitulada “Colidindo com a morte a 37 mil pés e sobrevivendo”, Sharkey, entre outras coisas, escreveu: “Eles [Lepore e Paladino] pareciam soldados de infantaria trabalhando juntos numa enrascada, tal como haviam sido treinados.”

Após uma passagem por Cuiabá, onde foram interrogados “por um enérgico comandante da polícia”(segundo Joe Sharkey), os sete ocupantes do Legacy foram transferidos para o Rio.

Sharkey viajou logo para Nova York. Lepore e Paladino foram impedidos de sair do Brasil a pedido do Ministério Público. Ficaram hospedados, com suas mulheres, que vieram dos Estados Unidos para encontrá-los, em um hotel da avenida Atlântica, na praia de Copacabana, no Rio. Após seus depoimentos terem sido colhidos na polícia, na Justiça e no inquérito aeronáutico, Lepore e Paladino foram liberados para regressar aos Estados Unidos, coisa que fizeram no mesmo dia.

Na época em que Lepore e Paladino estavam no Rio, o agora requisitado Sharkey, numa entrevista ao programa Today Show, da rede de televisão americana NBC, transmitida em 5 de outubro, disse que os pilotos do Legacy corriam riscos (não disse de que tipo) no Brasil.

Enquanto Sharkey se pavoneava nos Estados Unidos, equipes do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes, oCenipa, acompanhadas de representantes da Embraer, da ExcelAire, da Honeywell (fabricante das aviônicas do Legacy), do Comitê Nacional de Segurança no Transporte, o NTSB, e da Administração Federal de Aviação, a FAA, ambos americanos, inspecionavam o equipamento do N600XL. Não precisaram de muito tempo para verificar o perfeito funcionamento do transponder e do sistema anticolisão TCAS. Os dispositivos não haviam falhado, e sim sido desligados durante o voo São José dos Campos–Manaus.

A leitura do conteúdo das duas caixas-pretas do X-Ray Lima foi feita por uma empresa especializada do Canadá. Foram então reproduzidos todos os diálogos travados no cockpit, assim como os procedimentos de pilotagem adotados por Lepore e Paladino. Com isso, tudo que se passou a bordo tornou-se um livro aberto.

Se Lepore e Paladino tiveram grande parcela de culpa no desastre do Gol 1907, a responsabilidade dos controladores de voo brasileiros não foi menor. Em seu laudo, um dos apêndices do relatório do Cenipa, o NTSB americano salientou, adequadamente, que Lepore e Paladino tentaram, sem sucesso, entrar em contato com o Cindacta 1 por pelo menos quinze vezes na meia hora que antecedeu à colisão.

Os operadores do Centro de Controle Aéreo de Brasília simplesmente não selecionaram em seus equipamentos as frequências 123,3 e 133,05 mega-hertz, previstas nas cartas aeronáuticas para aquele setor e usadas pelos pilotos do Legacy. Se a seleção tivesse sido feita no console, conforme ditavam as normas, o nível errado de voo e o desligamento do transponder teriam sido detectados e a colisão não ocorreria.

Entre os erros graves cometidos pelo Cindacta 1, um dos principais foi o de não ter chamado o Legacy assim que os sinais do transponder desapareceram das telas de radar. Isso ocorreu às 19h02 Zulu, ou seja, 54 minutos antes do choque com o Boeing da Gol.

Outra causa contribuinte do acidente foi a instrução dada, pela torre de São José dos Campos, para que o Legacy seguisse até o Aeroporto Internacional de Manaus no nível de voo 370, o que significava voar a maior parte do percurso na contramão. Embora se deva supor que nenhum piloto, em pleno juízo, vá considerar como última palavra uma autorização de nível de cruzeiro para uma distância (2,7 mil quilômetros) e um tempo de voo (três horas e 34 minutos) tão grandes, essa permissão descuidada e errada foi usada na defesa de Lepore e Paladino.

O inglês deficiente dos controladores de voo, aliado à apatia dos pilotos americanos em lidar com a fraseologia muitas vezes incompreensível dos operadores brasileiros, fez com que ambos os lados procurassem se comunicar o mínimo possível. Inúmeras oportunidades para a correção do nível de voo e para o restabelecimento das emissões do transponder foram perdidas por causa desse descaso.

Para Lepore e Paladino, faltou airmanship. Para os controladores, entre diversas outras coisas, um melhor treinamento em inglês. Só como exemplo, a última avaliação dos operadores de São José dos Campos nesse quesito havia sido feita em 2003. Nela, cinco dos profissionais obtiveram resultado “não satisfatório”. Mas nenhum deles foi afastado do serviço. Continuaram se “comunicando” com pilotos estrangeiros. O mesmo aconteceu com o pessoal do Cindacta 1. Segundo a própria Aeronáutica, Jomarcelo Fernandes dos Santos, o sargento que assumiu primeiramente o Legacy no console, tem conhecimento limitado da língua inglesa.

Entre as causas do acidente, há que se considerar também a liberação prematura, por parte da Embraer, da aeronave para traslado, tendo em vista que Joe Lepore e Jan Paladino tinham poucas horas de voo noequipamento Legacy. O mais prudente era que ambos fossem acompanhados, entre São José dos Campos e Fort Lauderdale (ou, no mínimo, entre São José e Manaus), por um piloto da própria Embraer.

Não foi preciso muito tempo, nem muito estudo, para se apurarem as causas do desastre: imperícia e negligência dos pilotos do jatinho, imperícia e negligência dos controladores de voo e afobação do fabricante (Embraer) e do operador (ExcelAire) na hora de entregar e de receber o avião. Esses ingredientes combinados foram responsáveis pela morte das 154 pessoas que viajavam no Boeing.

Gostaria de encerrar a narrativa deste episódio mostrando o desfecho, na Justiça, dos processos, cíveis e criminais, relativos às personagens e às instituições envolvidas no desastre. Só que as idas e vindas do sistema judiciário brasileiro, com seus inumeráveis recursos e instâncias, tornam impossível relatar o que aconteceu em definitivo, seja com os pilotos do Legacy, seja com os controladores de voo, com a ExcelAire, com a Embraer, com a Gol e com a Aeronáutica.

Em maio passado, por exemplo, os pilotos americanos foram condenados a uma pena de quatro anos e quatro meses de prisão, em regime semiaberto. O magistrado, porém, substituiu a pena pela prestação de serviços comunitários em órgãos brasileiros nos Estados Unidos e pela proibição do exercício da profissão. O controlador Jomarcelo dos Santos foi absolvido de todas as acusações pelo juiz Murilo Mendes, sob a alegação de que, “pelas notórias deficiências” da sua formação, “só se pode agradecer por ele não ter errado com muito mais frequência”. O controlador Lucivando Tibúrcio de Alencar foi condenado a três anos e quatro meses de prisão, por ter programado equivocadamente as frequências de comunicação do centro de controle,o que impossibilitou contato com o Legacy. Ainda há recurso em segunda instância em todos os casos, o que significa que o desfecho do processo está distante.

02 julho 2009

A política das quadrilhas


Eugênio Bucci


Em toda parte, nos jornais, nos restaurantes, nas conversas de família, os escândalos no Legislativo suscitam protestos inflamados. É natural. Sem a capacidade de se indignar, o humano não existe. Mais que natural, é positivo que os cidadãos manifestem repúdio, revolta ou mesmo - a palavra é forte, mas é precisa - asco. A ira da sociedade é um bom combustível para a remoção de corruptos. Só isso, contudo, não basta. A gritaria revestida de sanha justiceira até ajuda, mas não explica nem resolve as coisas. Um pouco de razão serena é essencial.

Isso não significa que nos devamos refugiar nas atitudes fáceis dos que dizem que tudo é culpa "do sistema", que se não mudarmos a legislação eleitoral ou o que quer que seja nada se vai transformar de fato. Essas teorias que isentam os indivíduos de qualquer responsabilidade beiram o cinismo e, no limite, vêm para abençoar a burla - desde que dissimulada - das regras democráticas e a apropriação privada - desde que às escondidas - dos recursos públicos. Isso também não significa que qualquer concessão moral possa ser feita em nome da "governabilidade", nem significa que serão perdoados os crimes cometidos em favor do partido que, lá na frente, vai redimir a sociedade de suas misérias. Isso significa, apenas, que, só na base do moralismo, na acusação desse ou daquele corrupto, não se pode compreender a terrível crise de valores éticos que se abateu sobre a política brasileira.

A crise não se explica, somente, pela falta de caráter de fulano ou beltrano. Esse desastre não deve ser debitado às escolhas de dois ou três indivíduos. Ela decorre, também, de costumes que amparam e, por vezes, estimulam essas escolhas. Ela passa pelas características de um Estado - como foi apontado direta ou indiretamente por muitos - que não nasceu como obra da sociedade, mas como seu contrário, isto é, em muitas regiões brasileiras o Estado "caiu do céu" ou veio da metrópole para atuar como "fundador" da sociedade civil ou, pior ainda, para abastecer, com poder legal e com dinheiro estatal, os chefes locais, cujo mando sempre se baseou na força bruta, nas leis da selva, em estruturas sociais primitivas, anteriores, portanto, a uma noção de esfera pública. Aos olhos desses senhores, titulares do mandonismo local, a política não é uma extensão do exercício da cidadania, mas uma forma superior de articulação dos interesses privados que dão o bote sobre a coisa pública. Política, para eles, é isso, mais ou menos como organizar uma caçada: a gente vai lá, encontra as nossas presas, atira nelas, mata quantas conseguir matar e depois traz tudo para casa. Eles olham para o Estado como os extrativistas do século 16 olhavam para o pau-brasil: aquilo está lá à espera dos nossos machados e da nossa ambição. A política, para eles, é, sim, uma disputa: a disputa para ver quem chega primeiro à recompensa. Mais, uma recompensa que também é uma arma letal: o que o Estado puder oferecer para abater os inimigos será muito bem aproveitado.

Nesse sentido, não há de ser muito surpreendente que velhos coronéis do atraso se aliem a supostos socialistas de matriz bolchevique: para uns e outros, por mais distantes que pareçam estar, o Estado se toma para fins privados (fins partidários ou fins familiares são igualmente privados). Eles podem não se entender naquilo que alegam ser seus programas estratégicos, mas se irmanam de corpo e alma quando se trata de defender a preservação desse padrão de política: aquela que vê na coisa pública um butim, um atalho para a acumulação primitiva, uma fortaleza tática.

Às vezes, os noticiários de televisão nos brindam com imagens chocantes de certos desastres rodoviários: um ônibus tombou na estrada, vários morreram e, antes que o socorro chegasse, ele foi saqueado por não se sabe quem. É assim que esses senhores veem o Estado, como um ônibus que rolou de uma ribanceira. Alguns, não contentes em pilhá-lo, ainda se aboletam por ali. Constroem sua morada dentro da carcaça metálica que se enferruja e depois chamam os parentes, que por sua vez chamam mais parentes, e fazem daquela forma de habitação o símbolo de seu poder tribal. Para os súditos desses chefes, o Estado não é o corolário de um esforço coletivo, o produto de um grande mutirão histórico, o resultado do trabalho de cada um. Ao contrário, ele veio do nada, como um cavalo dado que passa encilhado, caiu como um meteorito cheio de pedras preciosas, um presente para o enriquecimento dos mais fortes, dos mais espertos, dos mais aptos. A quem os que têm juízo obedecem.

A muitos brasileiros estarrece que alguns dos políticos que agora ganham as manchetes por obra de sua desonestidade não emitam sinais de vergonha. Eles não se abalam, não demonstram a mínima crise de consciência. Por que será? Também para isso há outras explicações, além daquelas que acusam neles uma intransponível cara dura. Essa outra explicação tem que ver com a ética que os move, que não é a ética da coisa pública. Para eles, a lealdade aos amigos é um valor que fica, sim, acima da lei - e por isso eles são venerados entre os seus. Para eles, empregar a família é um dever moral, um dever muito mais respeitável do que economizar dinheiro público. Eles não se veem como corruptos, mas como guerreiros de sua gente e, nessa nobre missão, usam o que for preciso - principalmente o Estado, é lógico. Deles não se poderia dizer que não sabem o que fazem, pois têm noção do mal que causam, mas se poderia dizer que não alcançam as consequências de longo prazo de suas práticas. São como alguém que joga lixo pela janela do carro, na rua, sem ter noção dos malefícios públicos desse gesto.

A rua em que eles atiram seu lixo é o rosto de cada um de nós.

07 março 2009

NEM TUDO ESTÁ DOMINADO A DECISÃO DO CONFRONTO NECESSÁRIO

“O Regime Militar de 64 é a muleta moral dos intelectuais — eles o acusam de todos os crimes para melhor acobertarem os próprios... a esquerda, com o objetivo de demonizar os militares, transformou o falacioso conceito de direitos humanos num dogma divino. Como se vê, a criminalização paranóica dos militares só atende a um objetivo — esconder que os intelectuais de esquerda forjaram um país muito pior que o deles.” (Júlio Severo)

O controle civil das Forças Armadas é o mais importante passo que o petismo precisa dar para que seu projeto de poder perpétuo tenha sucesso. Em uma sociedade absolutamente dominada pela desagregação moral e ética, e com a corrupção, o corporativismo sórdido, e a prevaricação, dominando o poder público, ficamos em um impasse: ou nos unimos com os militares que não querem o país entregue ao socialismo genocida, ou nos conformamos, para mais tarde enterramos nossos mortos nas valas comuns do genocídio que sempre foi um instrumento de controle das sociedades pelas ditaduras socialistas.

Diante desta realidade, o comentário de Júlio Severo é rigorosamente pertinente. O texto de onde foi retirado representa, em minha opinião, uma das mais felizes avaliações de alguns aspectos do regime militar. Naquela época – e ainda atualmente – ênfase deve ser dada à reza de fé, proferida pela maioria dos integrantes da academia sob inspiração de um verme comunista ainda vivo: “Guevara, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”; com esta prece comunista esses canalhas terroristas iniciam todos os dias suas conspirações contra nossos sonhos de liberdade, dignidade e justiça social. A destruição do Estado de Direito Democrático é o objetivo final do projeto de poder perpétuo do petismo no país.

Antes da explanação do tema título do artigo, me permito explorar algumas outras colocações desse autor, que refletem de forma límpida as canalhices que essa esquerda corrupta, meliante, corporativista e sórdida tem feito contra as Forças Armadas.

Realmente podemos dizer que “As principais mazelas do Brasil são fomentadas artificialmente pela universidade, que, desde a década de 50, na ânsia de criar um novo mundo, especializou- se em destruir o existente. Isso fica muito claro quando se estuda a origem social dos guerrilheiros que pegaram em armas contra o regime militar. Eles vieram, em sua maioria, das universidades. Não tinham o menor apoio popular. Como é que o povo podia apoiar um bando de tresloucados que, de arma em punho, pregavam a derrubada de uma ditadura imaginária? Porque até o final de 1968, com a edição do AI-5, só havia ditadura na imaginação dos universitários.”

“Boa parte do chamado movimento social — que hoje alimenta o PT e demais partidos de esquerda — começou a ser construído graças a esse processo de institucionalização do país gestado pelos militares. Começando pelas próprias universidades federais — cobras a quem os militares deram asas. A Reforma Universitária feita pelos militares em 1968 profissionalizou o ensino superior no país, instituindo antigas reivindicações da própria comunidade acadêmica, como dedicação exclusiva de docentes, introdução de vestibular unificado e implantação de mestrados e doutorados. Valendo-se dessa estrutura, os intelectuais de esquerda se infiltraram nas universidades e, a partir delas, forjaram em todo o país um movimento social de proveta, destinado não a resolver problemas, mas a fomentá-los”.

Vamos ao tema título do artigo.

As denúncias e os fatos são incontáveis. O MST, um movimento ilegal, já conta com mais de cem mil militantes espalhados pelo país. Já sem tem notícia que em locais “sigilosos”, existem armas armazenadas para um eventual confronto em larga escala, além de seletos grupos estarem recebendo treinamento militar por guerrilheiros de forças revolucionárias estrangeiras.

O MST, neste cenário, já é uma força paralela – paramilitar – no país responsável direto por uma guerra fria com os poderes instituídos, observando-se que a necessária e dura retaliação legal, diante das sistemáticas ações do movimento que colocam contra a parede o Estado de Direito – invasão de propriedades, destruição de propriedades, assassinatos – tem se mostrado inexpressiva por medo, covardia ou cumplicidade dos representantes do poder público, subordinados aos ditames proferidos - no submundo da conspiração contra o país - pelo Retirante Pinóquio que, enquanto publicamente se finge de “bom moço”, dizendo não concordar com os crimes cometidos pelos quadrilheiros, nos bastidores dá as ordens necessárias para proteger seus militantes do MST.

O MST nunca foi refém do sistema legal institucional, no qual cada um é submetido ao respeito do direito, do simples indivíduo, da propriedade privada, até a potência pública. A hierarquia das normas legais é sistematicamente agredida pelo movimento.

Aos guerrilheiros do MST se junta outra tropa de apoio do petismo: mais de dez milhões de cidadãos que recebem as bolsas assistencialistas e que entrarão de cabeça nesse conflito para garantirem o direito de continuar recebendo dinheiro do contribuinte sem a contrapartida do trabalho.

Nas grandes metrópoles temos milhares de encarcerados indo para o asfalto defenderem o “direito” de continuarem agredindo, roubando e assassinando inocentes de todas as idades, graças ao STF, que defende o direito de defesa em liberdade sem restrição, em um processamento jurídico imoral, regido por manipulações desonestas e subterfúgios jurídicos, cujo objetivo maior é manipular de forma sub-reptícia os códigos legais a favor de quem comente toda a sorte de crimes.

O inevitável, então, deve acontecer, se a sociedade não decidir transformar-se em uma Cuba Continental. As Forças Armadas a pedido da sociedade sai dos quartéis e parte para um contingenciamento da ação terrorista ou para um confronto armado com a turma do socialismo petista. Se assim não fizerem, os cidadãos que não quiserem ser perseguidos devem começar a fazer fila para sua filiação ao Grande Partido para não parar diante das valas comuns das vítimas do socialismo genocida.

Na ausência dessa atitude dos nossos militares – a defesa do Estado de Direito – o país vai ser devastado por uma crise social de grandes proporções com nossas fronteiras absolutamente desprotegidas, o que permite a invasão de nosso território por forças revolucionárias amigas do retirante. É bom lembrar que o poderio bélico do ditador Chaves pode se aventurar a subjugar as Forças Armadas do país, especialmente, pelo ar, a um simples pedido do Retirante Pinóquio. Amigos comunistas revolucionários, que comungam do mesmo interesse em transformar a América do Sul em um novo repositória do comunismo assassino, não hesitarão em se unir contra os que lutam pela preservação de sonhos de liberdade e justiça social.

Pela paralisia do poder público em proibir este movimento ilegal – o MST –, que recebe milhões do desgoverno petista por vias indiretas, a obviedade do que pode acontecer é gritante: uma guerra civil entre os sem terra e as forças civis de defesa dos proprietários de fazendas que também tem o direito de defender seu patrimônio na ausência do Estado.

Neste cenário, o PT vive um paradoxo. Ou assume o comando das Forças Armadas para poder controlar as ações criminosas dos sem terra do seu jeito, ou assiste a uma guerra civil que se aproxima em que perderá o controle das ações desse grupo terrorista fantasiado de movimento social, fazendo com que uma intervenção civil-militar em seu próprio desgoverno seja inevitável.

Ao aproximar-se o cenário acima, a ilicitude do desgoverno petista, de continuar financiando um grupo armado, não será mais tolerada durante muito tempo, nem pelas Forças Armadas nem pela sociedade civil não vinculada ao petismo.

O paradoxo está colocado. E não poderia ser diferente conforme os ensinamentos contidos na história dos conflitos armadas a partir de movimentos sociais.

Aproxima-se o risco do projeto de poder perpétuo do petismo ser abortado pelo radicalismo de um movimento em que um dos seus fundadores foi o próprio presidente, que precisará de Forças Armadas sob o comando dos seus generais, para evitar ou combater o radicalismo do movimento dos sem-terra, sem perder o controle da caserna.

Esse cenário pode ser uma lógica explicação para um endurecimento das ações dos difamadores das Forças Armadas que estão agora correndo contra o tempo com o fortalecimento do poder dos sem-terra que já praticam ações de guerrilha cada vez mais violentas controlada pelos seus líderes, podendo se expandir a qualquer momento. A guerra fria e suja contra o Estado de Direito Democrática, promovida pelos sem-terra, já está em andamento.

A estratégia do Retirante Pinóquio em afirmar que a Lei de Anistia deve ser respeitada, deixando para os “togados” a decisão do aprofundamento do processo de perseguição e desmoralização das Forças Armadas, mostra mais uma vez os traços da personalidade doentio-etílica-hipócrita-leviana do maior estelionatário da política que já apareceu no nosso país. De um lado finge querer respeitar as leis, enquanto no submundo do movimento petista aciona todas as baterias para fazer do socialismo genocida uma alternativa para controlar o país, protegendo, pelo tráfico de influencia, pelo incitamento à corrupção, e pelo corporativismo sórdido, os cúmplices do petismo que se comportam, impunemente, no mais absoluto arrepio aos códigos legais do país.

A posição da sociedade em eleger As Forças Armadas como a Instituição mais confiável do país através da FGV (que não tem nada a ver com aquela que promove 84% de aceitação para o retirante Pinóquio) acelera os atos indiretos do desgoverno petista para promover a desmoralização de quem o povo mais confia. O PT precisa ter nas mãos o comando das Forças Armadas humilhadas, para obter seu domínio e contando com suas tropas para manter o MST sob controle, até que sua sucessora Estela assuma o Poder. Aí não tem mais jeito não.

O cenário é propício para a desagregação social: ”A situação do País é caótica. Pode-se dizer que ele está na UTI. Os poderes constituídos e as principais Instituições estão desacreditados, por que inoperantes e ineficientes, seus dirigentes sem autoridade, sem moral, sem ética pública no desempenho de suas funções, contaminados com a corrupção desenfreada, com a máquina administrativa falida e a impunidade dos criminosos que gera a banalização dos crimes. Essa situação põe em risco a nossa frágil Democracia que assisti a desmoralização das Instituições, do Parlamento, da Justiça, compromete a interdependência dos Poderes Constituídos, a Soberania e as Integridades Territorial e Nacional.” (Torres de Melo)

A permissão da sociedade em que se eleja, em 2010, o candidato indicado pelo Retirante Pinóquio, será a capitulação da sociedade nos seus sonhos de liberdade e justiça social, passando a imperar o assistencialismo clientelista para a maioria, a riqueza para a burguesia comunista, e a paz e proteção garantida pelo desgoverno petista apenas para o peleguismo sindical – capacho corrupto do petismo –, para a academia comunista, para o jornalismo marrom vendido, para os artistas amantes de uma Cuba Continental, e para os financiadores da traição do país: os banqueiros, as empresas estatais e os grandes empresários. Para o resto, subordinados a uma Justiça relativista e corporativista sórdida, o resto: a prisão, a falência social, a vala comum, a falta de oportunidades de educação, cultura e trabalho, a perseguição, a censura, e a eterna procrastinação da esperança de viver em um país decente, democrático, digno, e com justiça social.

06 dezembro 2008

Um ministro fútil,vaidoso e leviano.

Entrevista: Carlos Minc
"Tem de ter televisão"

O ministro do Meio Ambiente explica por que gosta de
aparecer, fala de suas brigas com outros ministros e diz que
não é um "beque de roça" que só sabe negar licenças ambientais


Leonardo Coutinho

Ana Araujo

"Eu mesmo me chamo de midiático. A minha estratégia é essa. Dizem que eu quero aparecer, mas ninguém lê o Diário Oficial. A mídia quer notícia"

Ao ser nomeado ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc recebeu duas missões: destravar a concessão de licenças ambientais para obras de infra-estrutura e conter o desmatamento da Amazônia. Em seis meses, Minc emitiu quase 200 licenças, pouco menos do que sua antecessora, Marina Silva, fazia em um ano inteiro. Os monitoramentos por satélite da Amazônia indicam que ele está cumprindo a segunda tarefa. Durante a sua gestão, a velocidade de destruição da floresta caiu. Ele alcançou esses resultados fazendo tudo o que Marina Silva abomina. Cedeu, negociou e, sobretudo, apareceu muito na TV. "Sou midiático", diz o ministro, que, aos 57 anos, rompe os protocolos desfilando de colete – e sem paletó – nos salões da capital.

O senhor foi nomeado ministro para agilizar as licenças ambientais para obras públicas?
Tenho essa fama, e ela serviu para que o Lula me chamasse, mas essa não é a minha característica principal. Tenho mais de vinte anos de luta ecológica. Não vou me tornar um facilitador de licenças pura e simplesmente. O que fiz foi eliminar etapas inúteis. Há gente que acha que ministro do Meio Ambiente é uma espécie de beque de roça do desenvolvimento, que sempre deve dizer: "Por aqui, não passa". E, quando passa, ainda tem de pedir desculpa por dar legalmente uma licença. Essa idéia é equivocada. Quando a obra atende aos quesitos do licenciamento, não tem por que travar. Se não dá para dar a licença, não cozinho ninguém. Aviso logo e vou à televisão dizer por quê.

O que a televisão tem a ver com isso?
Em tudo o que eu faço tem televisão. Cheguei à conclusão de que é a visibilidade que faz as pessoas dar importância a um trabalho. Quando era deputado estadual no Rio, fiz uma lei obrigando motéis a vender camisinhas a preço de custo aos hóspedes. Depois, fui até o obelisco da Avenida Rio Branco, um símbolo fálico da cidade, e coloquei nele um camisão de 18 metros de altura. As pessoas entenderam logo a mensagem: camisinha é fundamental.

O senhor se incomoda em ser classificado de "midiático"?
Eu mesmo me chamo assim. Não vejo problema em criar uma situação que chame a atenção da mídia. Quando era deputado, levei a imprensa a um edifício para mostrar uma moradora que, a partir de uma lei minha, garantiu o direito de sua empregada de usar o elevador social. Apareceu a empregada entrando pela porta da frente com o mandado de segurança na mão, tal como uma carta de alforria. No fim, ela deu um beijinho na patroa. Foi o fecho da matéria do Jornal Nacional. A minha estratégia é essa. Dizem que quero aparecer, mas o fato é que ninguém lê o Diário Oficial. A mídia quer notícia? Eu dou notícia.

"Concedi quase 200 licenças em seis meses. Cada vez que uma sai, o sorriso da Dilma vai de uma orelha à outra. Saco sempre a lista de licenças do bolso na hora de negociar mais dinheiro e pessoal"

O senhor é vaidoso?
A vaidade faz parte. Tenho cabeça de jornalista, entende? Se faço uma coisa boa, quero que as pessoas saibam e compreendam. Fazer o que ninguém entende não vale a pena. Por isso, adoto uma linguagem que torna minhas ações interessantes para a sociedade e para a mídia.

É para tornar tudo mais interessante que o senhor acompanha as apreensões do Ibama?
É importante para os servidores mostrar o seu trabalho lá na ponta do processo: as ameaças, as marcas de balas nos seus carros, as dificuldades de estar no meio do mato, e por aí vai. Quando vou, a imprensa vai atrás e eleva o moral do pessoal. Comigo junto, a manchete é muito maior. Já apreendi pássaros em Pernambuco e destruí fornos de carvoarias na Bahia. Midiático como sou, subi em trator e arremeti contra os fornos que queimavam madeira.

Em junho, o senhor comandou a apreensão de gado em reservas florestais no Pará e, depois, vendeu as cabeças confiscadas por um preço vil.
Esses bois piratas viraram até piada, mas o negócio foi bom. Havia 40 000 cabeças de gado nas reservas. Mesmo com uma infinidade de ordens judiciais, ninguém as tirava de lá. Fomos, tomei 4 200 cabeças e as vendi. O governo só teve prejuízo porque os leilões foram boicotados. Vou fazer tudo de novo: apreender e, em seguida, vender.

Mas o senhor gastou mais com a operação do que arrecadou. Não foi um erro?
O objetivo não era dar lucro, mas combater o crime. As pessoas não podem enriquecer com a devastação.

O senhor vive brigando, por meio da imprensa, com seus colegas de ministério, mas alguns deles dizem que é tudo combinado. É verdade?
É, mas há exceções. A suspensão do asfaltamento da BR-319, que liga Porto Velho a Manaus é uma. O Alfredo Nascimento (ministro dos Transportes) soube pelo jornal e quis me matar, literalmente. Fui chamado para uma reunião com ele, a Dilma (Rousseff, da Casa Civil) e o presidente Lula. Eles olharam para mim com aquela cara que você pode imaginar. Eu deveria ter avisado, mas era aquilo mesmo: o asfaltamento tinha de parar.

O senhor poderia citar exemplos de brigas que foram apenas teatro?
Já avisei antes o (Reinhold) Stephanes (Agricultura) e o (Edison) Lobão (Minas e Energia) de que ia falar mal deles nos jornais. Dizem que sou errático, porque vou muito adiante e, depois, volto um pouquinho. Mas essa é minha tática. Bato, derrubo forno, leilôo boi pirata, mas não vejo problema em recuar para adequar uma lei à realidade. Vai parecer um auto-elogio, mas sempre fui bom negociador.

O senhor é mesmo muito criticado por voltar atrás em suas posições.
Apanho muito. Fui acusado de voltar atrás no caso da lista dos maiores desmatadores. Independentemente de discutir se a lista era bem-feita ou não, ela evidenciou que não se pode assentar sem-terra na Amazônia. Primeiro, porque floresta não é área improdutiva para fazer reforma agrária. Depois, porque esses assentamentos não são sustentáveis. O resultado do terremoto que fiz não será se perdoei o Incra ou se o ministro Guilherme Cassel (Desenvolvimento Agrário) olhou torto. O saldo será sentido em dois anos, com direito a capa de VEJA e matéria do Fantástico: vai ser a mudança do modelo de reforma agrária.

Nos anos 60, o senhor foi colega da ministra Dilma Rousseff no grupo guerrilheiro VAR-Palmares. Como era sua relação com ela?
Estávamos na mesma área da resistência, mas não éramos amigos. Só nos cruzamos duas ou três vezes naquele período. Voltei a encontrá-la quando ela foi secretária de Energia do Rio Grande do Sul. Tenho muita simpatia pela Dilma. Às vezes, almoçamos juntos. Eu a aconselho a agarrar a bandeira do desmatamento zero. Isso a fortaleceria politicamente junto à classe média, que é sensível à questão ambiental.

"Colete compõe bem, sobretudo no Rio, e protege as costinhas, se o lugar tem ar-condicionado. Tenho 48 peças de tudo quanto é lugar. Nas ocasiões formais, uso coletes ‘ecochiques’. Com gravata, ficam muito elegantes"

O senhor acredita que ela o ouve?
Muito, principalmente depois que simplifiquei o licenciamento ambiental para a execução de obras. Não eliminei as tensões do meu ministério com os desenvolvimentistas, mas as amainei. Já concedi quase 200 licenças em seis meses. Cada vez que uma sai, o sorriso da Dilma vai de uma orelha à outra. Isso me credenciou a pedir mais fiscais, parques, recursos. Saco sempre a lista de licenças do bolso na hora de negociar mais dinheiro e pessoal.

O fato de ela ter sido sua colega na luta armada ajuda?
Não, porque fiquei quase dez anos exilado. Permaneci longe da família e dos amigos, mas em uma situação melhor do que a de quem estava na cadeia. Viajei e estudei. Fiquei um ano preso e passaria mais dez se não fosse trocado (em 1970, pelo embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben). Mas não me arvoro em herói. Sou de uma geração que resistiu e pagou por isso. Essas discussões ficam extemporâneas quando são individualizadas com questões do tipo: "Fulano torturou ou não?", "Sicrano atirou ou não?". Agora, esse debate voltou.

O que o senhor pensa da revisão da Lei da Anistia?
É totalmente fora de contexto. Não entro no mérito da Justiça, o que discuto é o ganho político desse processo. Não tenho falado publicamente sobre o assunto, mas o que temos de fazer é criar mecanismos para evitar que os abusos se repitam. Por isso, defendo a Lei da Anistia e também a abertura dos arquivos militares sobre a ditadura.

O senhor foi torturado?
Essa foi a parte democrática da ditadura: porrada para todo mundo.

Qual foi o pior momento?
O que eles contaram para o meu pai que tinham feito comigo. Meu pai está vivo até hoje, mas, naquele dia, quase se foi. O que fizeram foge à razão. A tortura é uma coisa inqualificável, mas tem um objetivo – obter informação. Agora, torturar familiar de preso é doença pura.

O que fizeram com o senhor?
Não quero falar sobre esse assunto.

Qual é sua posição em relação à maconha?
Defendo a legalização como forma de combate ao tráfico. A guerra da droga mata mais que overdose. Melhor do que gastar dinheiro com repressão é fazer campanhas para educar. Veja o caso do cigarro. O consumo está caindo no mundo, porque se gasta o dinheiro com campanha, e não com proibição.

O senhor já foi chamado de maconheiro por propor leis em favor de usuários de drogas.
Pois é, porque tento mostrar que o usuário e o dependente são diferentes. O usuário não tem afetadas suas funções físicas, psicológicas e sociais. Já o dependente tem um problema de saúde. O estado deveria ter políticas para os dependentes, e não tem. Os usuários têm suas responsabilidades, mas não dá para apontar o dedo para quem fuma um baseado e dizer que ele é culpado por tudo o que está aí.

O senhor já fumou maconha?
É uma pergunta a que não respondo, por ser absolutamente irrelevante. Não trato de minha vida pessoal. É a mesma coisa quanto aos gays. Quando comecei a legislar em favor deles, perguntaram se eu era gay.

Como o senhor lida com essas insinuações?
Nunca vou responder a elas. Na Assembléia do Rio, diziam até que eu legislava em causa própria. Veja só: quer dizer que tem de ser gay para fazer uma lei em favor deles? Essa é uma forma de amesquinhar a política.

O senhor já disse que é "quase gay". Como se deve entender sua declaração?
Era uma brincadeira do tempo em que se usava a expressão GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Eu dizia que era o S, o simpatizante. Depois fiz tantas manifestações e leis em favor dos gays que podia dizer que era mais que S, era integrante de carteirinha da comunidade. Só isso. Eu e o (governador fluminense) Sérgio Cabral somos co-autores de leis que podem deixar um político estigmatizado em setores mais conservadores. Por isso, brinco que somos parceiros civis. A gente até saiu na capa de um jornal. Estávamos abraçados, na Parada Gay deste ano.

Por que o senhor usa colete?
O colete compõe bem. Dispensa o paletó, sobretudo no Rio, que é quente. Também protege bem as costinhas quando o lugar tem ar-condicionado. Tenho 48 peças de tudo quanto é lugar. Fui à parada gay com um bem desvairado que ganhei do Carlos Tufvesson, gay militante e um dos maiores estilistas do Rio. Nas ocasiões formais, uso coletes "ecochiques". Com uma gravata, ficam muito elegantes.

O senhor se acha bonito?
á estive melhor. No Rio, eu caminhava e nadava. Em Brasília, levo uma vida desregrada, um sobe-e-desce terrível de avião e helicóptero. Não tem corpo que agüente. Agora, só caminho um pouquinho, faço acupuntura e me alongo. Tenho de cuidar ao mesmo tempo do ecossistema do país e do meu próprio, que é meu corpo.

14 abril 2008

Golpe constitucional

Denis Lerrer Rosenfield
A prudência recomenda a desconfiança. Encenações, mentiras, desmentidos e desmentidos de desmentidos se tornaram o cotidiano dos brasileiros, aflitos com a falta de moralidade reinante na cena pública. O atual governo nem se ruboriza mais com o que faz, tendo desaparecido qualquer resquício de coerência entre o que é dito e o que é feito. O que vale num dia cessa de valer em outro. Não há a menor preocupação com o cumprimento da palavra e a retidão no comportamento. Neste contexto, como situar a discussão sobre um eventual terceiro mandato de Lula, seja sob a forma da pura e simples reeleição (acompanhada ou não de um plebiscito), seja sob a de um "novo" mandato de cinco anos, em que a partida estaria zerada?

Lula está em plena campanha pelo PAC, inaugurando obras inexistentes e criando símbolos, como se assim pudesse passar à opinião pública a idéia de que algo está sendo feito. O que, porém, está sendo feito senão a campanha de si mesmo, a campanha de alguém empenhado num processo eleitoral de promoção de si mesmo?

Não se pode creditar a Lula a virtude da coerência ou o cumprimento da palavra. A palavra só serve como instrumento retórico, de convencimento do "povo". Eis por que acreditar num líder carismático como Lula é prova de ingenuidade. Ele diz uma coisa e outra sem o menor compromisso com a verdade.

Legítima é, pois, a pergunta: o que faz ele com seus discursos? Desde a sua eleição, jamais abandonou uma postura eleitoral, algumas vezes criticando o governo, como se não fosse o responsável por ele. O que fala é o seu comportamento. O seu fazer é o de alguém que tem um projeto pessoal de poder, pronto a tudo se as condições políticas lhe forem favoráveis. Lula não permanece em Brasília, na rotina própria de um presidente, mas faz campanha em todo o País, recolhendo os frutos de sua popularidade e criando condições para que esta suba ainda mais. Os seus altos índices mostram que o seu "fazer" produz bons resultados. Ele pode dizer pessoalmente que não quer a reeleição, mas, se o "povo" quiser, aí, sim, a coisa seria diferente.

O que está em processo, podendo ou não ser bem-sucedido, é o que poderíamos denominar "golpe constitucional". Golpe porque se trata de uma mudança abrupta das regras do jogo, feita por um líder carismático que se aproveita de sua alta popularidade e de seu forte apoio em sindicatos (comprados) e movimentos sociais (por ele financiados), visando a alterar completamente os princípios da democracia representativa. Constitucional porque seguiria procedimentos constitucionalmente estabelecidos, aparentemente obedecendo à ordem da legalidade. A aparência de golpe desaparece, haja vista que as formalidades democráticas são mantidas, prescindindo do uso das armas. Trata-se, na verdade, de uma subversão da democracia por meios democráticos.

Uma das condições de um processo desse tipo reside num líder cujo perfil carismático o coloque acima das refregas partidárias e dos conflitos sociais. É precisamente o caso de Lula, que faz um discurso que agrada a empresários e outro, a movimentos sociais, aparentemente dando satisfação a ambos. No que diz respeito a alianças partidárias, elas lhe servem para mostrar que se situa acima do seu jogo. A divisão entre partidos ditos de esquerda e de direita tampouco é observada, pois coexistem em sua base de apoio o PP e o PCdoB, por exemplo. Sob esta ótica, os que se opõem a ele só podem ser "conspiradores", como se estivessem cometendo um crime de lesa-majestade.

Um líder carismático deve ter uma ampla base social de sustentação. O recente veto à fiscalização pelo Tribunal de Contas da União dos novos recursos concedidos às centrais sindicais mostra toda a sua preocupação em contentar essa sua base. Primeiro, ele lhes concede uma forma específica de financiamento, propiciando-lhes um amplo espectro de atuação. Segundo, esses recursos são de livre utilização, não sendo objeto de nenhuma fiscalização. Desta maneira, os sindicatos estão cada vez mais amarrados ao próprio aparelho de Estado, fazendo parte dele. Os antigos discursos do sindicalista pela autonomia sindical e pelo fim da obrigatoriedade da contribuição sindical são simplesmente "esquecidos". A meta agora é que todos se tornem igualmente pelegos, instrumentos do seu próprio poder.

Os movimentos sociais cumprem essa mesma função de controle de uma ampla massa de manobra, podendo ser requisitada a qualquer momento. Poderia ser, por exemplo, requisitada para uma ampla mobilização nacional por um plebiscito visando a uma reforma constitucional que permita a introdução da reeleição para um terceiro mandato. O recente episódio de financiamento do MST com verbas do Ministério da Educação é apenas a ponta de um imenso iceberg, que envolve outros Ministérios, como o de Desenvolvimento Agrário e o de Desenvolvimento Social. Os movimentos sociais são financiados pelo governo, que conta com esse grande trunfo. Podem, assim, invadir qualquer propriedade privada, prejudicar o agronegócio, ocupar rodovias e estradas de ferro. Ademais, estão com as mãos livres para agirem segundo as suas conveniências, pois a lei não é a eles aplicada. A impunidade é total.

Dentro desse projeto, é fundamental contar com uma ampla base social, sobretudo de desempregados ou empregados temporariamente, pois estes não são alcançados pelos sindicatos ou o são, imperfeitamente, pelos movimentos sociais. Eis a função cumprida pelo Bolsa-Família, que alavanca a alta popularidade do presidente entre os mais desfavorecidos, que vêem os recursos recebidos como uma forma de sobrevivência. Se seus alimentos são fornecidos pelo presidente, sua vida dele depende. Não convém menosprezar o poder de mobilização que pode estar aqui embutido, e a mobilização eleitoral seria um dos seus fatores.

Todo o cuidado é pouco!