por Augusto de Franco
A cúpula do PT e do governo, composta pelos mais íntimos colaboradores de Lula – o chefe real do Partido dos Trabalhadores – está sendo processada pelo Supremo Tribunal Federal por formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, remessa ilegal de divisas para o exterior. Os crimes são gravíssimos. Apontou-se até um suposto chefe da gangue – José Dirceu – mas nada se disse sobre o chefe do chefe. Dirceu tinha autonomia para montar o formidável esquema criminoso? Ele desobedeceu seu chefe? Lula de nada sabia?
Os analistas políticos na imprensa dizem que Lula está distante de tudo isso porque a população não acredita que ele tenha alguma coisa a ver com os crimes cometidos pelos seus auxiliares no governo e no partido. Mas, por algum motivo, se esquecem de dizer o que eles próprios pensam. Por acaso os indícios de que Dirceu é o chefe da quadrilha, baseados na sua autoridade sobre os demais, não valeria igualmente – e com mais razão ainda – para Lula? Lula é ou não é o responsável, em última instância, pelos crimes de seus subordinados, se não por ação pelo menos por omissão? Se de nada sabia, por que não tomou a iniciativa de execrar publicamente os meliantes? Por que sempre os defendeu, botando panos quentes e afagando suas cabeças como um pai amoroso? E por que, até hoje, continua afirmando que o PT não errou, quando toda a sua direção enveredou para o crime (como se existisse essa entidade mítica – um PT ideal, em outro plano de existência – cujo comportamento fosse independente do que decidem seus dirigentes)?
Mas vamos pensar um pouco: o que têm a ver as opiniões da maioria da população com os fatos? Porventura elas podem mudar os fatos? Nossos analistas políticos são, por acaso, pesquisadores ou entrevistadores do Ibope ou do DataFolha? São escrutinadores de algum pleito, encarregados de contar e totalizar opiniões para ver quem fez maioria?
Ocorre que não estamos fazendo pesquisa de opinião. Não estamos apurando nenhuma eleição. Estamos constatando fortíssimos indícios de violação da lei e dos princípios democráticos.
Sim, a maioria da população pode estar convencida de que Lula de nada sabia. De que foi covardemente traído. De que ele é puro como um querubim. E daí? Por acaso a lei depende da opinião privada dos cidadãos?
Vejam que há aqui um terrível engano. Muitos alemães recusavam-se a acreditar que Hitler sabia dos campos de concentração, mesmo depois de terminada a guerra. Grande parte dos peruanos ainda admira Fujimori e acha que ele foi injustiçado. E daí? Por causa disso, esses ditadores deveriam ser absolvidos pela opinião pública?
Sim, é preciso saber o que acha a opinião pública, que não é – como tentei mostrar em outro artigo publicado aqui – a mesma coisa que a soma das opiniões privadas da população. A opinião pública é a opinião formada a partir dos inputs dos que proferem opiniões no espaço público e participam do processo interativo pelo qual tais opiniões se combinam, se polinizam mutuamente e se modificam.
Quem profere opiniões políticas na esfera pública não pode deixar de dar uma opinião sob o pretexto de que ela não está de acordo com a soma das opiniões privadas da população. Se fosse assim, deveríamos deixar de expressar nosso repúdio à pena de morte, só porque a maioria da população admite tal pena desumanizante. E não deveríamos nos colocar contra a censura estatal prévia de programas de TV em que apareçam cenas de sexo. E não deveríamos considerar inaceitável que a polícia bata em presos para obter confissões de crimes. Para sermos coerentes com a atitude que estamos tomando em relação à Lula, deveríamos nos omitir sobre tudo isso, dizendo apenas que a maioria da população aprova tais medidas.
O engano nasce da confusão, fatal para a democracia, entre o processo de formação da vontade política coletiva e alguns mecanismos utilizados para captar tendências majoritárias de opinião (como as pesquisas de opinião) e para eleger representantes (como as eleições).
Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do entrevistador do Ibope ou do DataFolha a sua opinião. Bastaria, de dois em dois anos, depositar secretamente seu voto na urna.
Mas, como já havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto "Ética de democracia", a democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de Estado submetida à regra da maioria. Esse conceito instrumental de democracia reduz a idéia de formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra de maioria... Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser descoberta aritmeticamente.
O comportamento de nossos analistas políticos deriva, é certo, de uma covardia original dos chamados partidos de oposição, que – temendo uma instabilidade institucional e contra todas as evidências – resolveram fazer de conta que acreditavam que Lula nada tinha a ver com os malfeitos de todos os seus mais íntimos auxiliares.
Eis aí o resultado. A covardia inspirou a leniência. A leniência descambou em conivência. A conivência insuflou o colaboracionismo. E tudo isso levou à incoerência suprema que permitiu que o verdadeiro chefe pudesse vestir a perigosíssima armadura da inimputabilidade para garantir, pelo menos até agora, a impunidade de seus agentes.
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