Uma semana após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentar seu balanço dos primeiros 100 dias do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), descobriu-se que já atuava no Brasil uma quadrilha especializada em desviar para o ralo da corrupção as verbas desse plano idealizado para permitir ao País um pulo no seu desenvolvimento.
Na manhã da quinta-feira 17, a Polícia Federal desbaratou a organização criminosa composta de 49 pessoas, dedicada a fraudar licitações de obras do Orçamento nas áreas de infra-estrutura, especialmente transportes e energia. Em pouco mais de 12 horas, 47 pessoas do esquema estavam presas. As falcatruas começaram na cidade de Camaçari, na Bahia, e se estenderam por dez Estados, sugando verbas dos ministérios de Minas e Energia, Integração Nacional, Cidades e Transportes. O modus operandi assemelha-se muito ao praticado pelos sanguessugas, que roubavam recursos na área da saúde. Novamente, há uma empreiteira que comanda a quadrilha. Outra vez, há assessores de ministérios empenhados em liberar as verbas.
De novo, governadores e prefeitos envolveram- se para dirigir licitações e beneficiar a empreiteira. A diferença, agora, está no tamanho dos peixes graúdos envolvidos. Nunca tantos políticos foram incriminados numa operação policial: dois prefeitos, um governador, um ex-governador, três parentes de governadores e ex-governadores, mais altos funcionários de ministérios.
A importância das credenciais desses personagens é suficiente para se imaginar a gravidade dos próximos desdobramentos do escândalo, nos Estados e no governo federal. A ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, tão logo tomou conhecimento do tamanho do esquema e do peso dos envolvidos tratou de emitir um sinal de alerta. Disse que essas prisões devem servir de exemplo a todos aqueles que acreditam na impunidade.
O envolvimento do governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e do seu antecessor e aliado, José Reinaldo Tavares (PSB), pode provocar uma reviravolta política no Estado. O mesmo corre o risco de acontecer em Alagoas, onde caiu toda a cúpula da Secretaria de Infra-Estrutura do Estado, indicada pelo PMDB. O mesmo PMDB do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), um dos principais protagonistas do governo de coalizão liderado pelo presidente Lula. O chefe da nova quadrilha, Zuleido Veras, dono da Construtora Gautama Ltda., é amigo de Renan há mais de 30 anos. Políticos como a prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, receberam doações de campanha da Gautama.
Por muito pouco, a Operação Navalha não terminou com a prisão de um governador em pleno exercício das suas funções. A PF pediu a prisão preventiva de Jackson Lago, que acabou negada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon. O que aparece, porém, nas escutas telefônicas feitas pela PF, obtidas por ISTOÉ, é muito grave para Lago, e pode acabar servindo como motivação para um possível processo de impeachment. Dois sobrinhos do governador, Alexandre Maia Lago e Francisco de Paula Lima (conhecido como Paulo Lago), aparecem nos grampos negociando uma propina de R$ 240 mil. Em troca, conseguiriam que irregularidades na obra de uma ponte fossem ignoradas e que se liberasse para a Gautama R$ 2,9 milhões.
Nos grampos, os dois afirmam agir em nome do governador. Nas conversas interceptadas com autorização judicial, Alexandre Maia Lago diz que “recebeu recomendação de seu chefe hierárquico para que se encontrem no Hotel Alvorada”, em Brasília. Enquanto isso, o próprio Jackson Lago aguardava em outro hotel da cidade. Ele não registrou seu nome na portaria, mas a PF comprovou a sua presença no hotel, através das imagens das câmeras de segurança.
O que complica ainda mais a situação política no Maranhão é que o antecessor de Jackson Lago, José Reinaldo Tavares, encontra-se desde a noite de quinta-feira 17 preso na Superintendência da PF em Brasília também por envolvimento com o esquema dos navalhas. Ex-aliado do senador José Sarney (PMDB-AP), José Reinaldo rompeu com ele de forma violenta. Inimigos, então, José Reinaldo foi o principal articulador da campanha de Lago, que acabou derrotando a filha de Sarney, a senadora Roseana Sarney (PMDB-MA), nas eleições para governador no ano passado.
A operação derruba de uma só vez os dois maiores inimigos da família Sarney. No caso de José Reinaldo, a máfia empenhou-se em liberar dinheiro para obras com irregularidades nas suas medições. Após a liberação, o governador ganhou da quadrilha um Citroën C5, comprado em Brasília por R$ 110 mil. O carro foi pago com um cheque de Geraldo Magela Fernandes da Rocha, assessor de José Reinaldo. Numa conversa em 15 de julho de 2006, porém, fica claro que quem comprou o carro foi Zuleido. Ele pergunta se o carro que estava com a então primeira-dama do Maranhão, Alexandra Cruz, era o que Geraldo havia comprado. “Geraldo diz que não e que o carro que compraram (Geraldo e Zuleido) para ele ficou onde está (Brasília)”, diz a transcrição do grampo feita pela PF.
Não é a primeira vez que José Reinaldo ocupa espaço no noticiário policial. Ele se envolveu com aquele que foi o primeiro escândalo de grandes proporções no País depois do fim da ditadura militar, durante o governo José Sarney (1985-1990). José Reinaldo era o ministro dos Transportes quando se descobriu que a licitação para as obras da Ferrovia Norte–Sul tinha sido dirigida.
As coisas só não ficaram perfeitas agora para Sarney porque o seu principal apadrinhado no governo federal também terá de dar explicações. Um dos braços do esquema operava forte no Ministério de Minas e Energia, cujo titular, Silas Rondeau, é da cota do senador. O chefe de gabinete de Silas, Ivo Almeida Costa, e o assessor Sérgio Pompeu de Sá estão presos na PF. Segundo a polícia, eles atuaram diretamente para fraudar uma licitação que beneficiou a Gautama numa obra do Programa Luz para Todos no Piauí. Tempos atrás, o ex-ministro José Dirceu também teve um assessor, Waldomiro Diniz, flagrado recebendo propinas. Dirceu pediu demissão. Na quinta-feira 17, o ministro Silas Rondeau afastou os dois auxiliares.
Mas é com outra alta autoridade do PMDB que o governo tem motivos para ficar preocupado. Em 2000, ISTOÉ já havia apontado para as relações do presidente do Senado, Renan Calheiros, com Zuleido Veras e a Gautama. A reportagem apontava para irregularidades em obras da Gautama de responsabilidade do então secretário de Infra-Estrutura de Alagoas, Olavo Calheiros, irmão de Renan. Agora, a investigação derrubou toda a cúpula da mesma Secretaria de Infra-Estrutura alagoana, novamente da cota do PMDB dentro do governo do tucano Teotônio Vilela Filho. Em Alagoas, a quadrilha agia desde abril de 2006. Lá, também foram cooptados agentes do Estado para desviar dinheiro de obras, como a barragem do rio Pratagy, financiada pelo Ministério da Integração Nacional. Nos grampos, chega-se a discutir a possibilidade de as medições da obra serem feitas pelo próprio secretário de Infra- Estrutura, Adeilson Teixeira Bezerra.O esquema contaminou também a Câmara Legislativa do DF. O deputado distrital Pedro Passos (PMDB), que já foi preso por grilagem, é outro navalha preso. Por seu intermédio, um crédito suplementar de R$ 3 milhões de um convênio do Ministério da Integração com a Secretaria de Agricultura do DF, para uma obra de desenvolvimento de áreas irrigadas da Bacia do Rio Preto, foi liberado pela Câmara em 2006. Em troca do favor, Zuleido diz, conforme as escutas telefônicas, que irá pessoalmente a Brasília para lhe levar o “material”. Pedro responde, então, que “diante da notícia boa” lhe dará outra: “o crédito foi aprovado”. No dia 13 de julho de 2006, o “material” de Pedro Passos foi entregue no Hotel Eron, em Brasília.
Com tantos políticos envolvidos, o esquema está longe de se concentrar apenas no PMDB. Em Sergipe, foi preso João Alves Neto, filho do ex-governador João Alves Filho, do DEM. Ali, a fraude atingiu obras como o sistema de adutora do rio São Francisco, orçada em R$ 28 milhões.
Os diálogos revelam que João Alves Neto recebia regularmente “propinas” para liberar recursos relativos às medições de obras em favor da Gautama. Segundo a PF, mesmo sem exercer cargos públicos, era o filho do governador de Sergipe quem comandava as finanças do Estado. Para honrar os pagamentos fraudulentos à Gautama, o Estado chegou a ter de recorrer a empréstimos bancários contraídos pela Secretaria de Fazenda e pela Companhia de Saneamento de Sergipe. A viabilidade destes empréstimos era tratada pelo próprio empresário Zuleido com João Alves Neto. No dia 6 de setembro de 2006, os diálogos da quadrilha revelam que João Alves Neto receberia uma propina de R$ 216 mil.
O PT e o PSDB também têm representantes envolvidos na quadrilha. O prefeito de Camaçari (BA), Luiz Carlos Caetano, ajudou a surrupiar parcela dos R$ 9,7 milhões para obras de urbanização no município, dinheiro do Ministério das Cidades. O prefeito contou com a ajuda de Flávio Pin, superintendente de Produtos de Repasses da CEF. Em troca, além de propina, o prefeito petista ganhou mimos como convites para o camarote da Gautama no Carnaval de Salvador, passeios de lancha, passagens aéreas e hospedagem na capital baiana.
O prefeito de Sinop (MT), Nilson Leitão, do PSDB, e seu antecessor, Jair Pessine, também estavam na contabilidade das propinas da Gautama. “Esses 200 é para aquele compromisso que eu tenho de Sinop”, diz Zuleido, em um dos grampos. A PF monitorou Jair Pessine até a entrega do dinheiro, em Brasília. Na volta para Sinop, Pessine foi ao lado do atual prefeito. Agora, os dois também voltaram juntos na quinta-feira para Brasília. Mas algemados em um avião da PF rumo ao xadrez.
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